Em um ponto remoto da Amazônia, helicópteros da Polícia Federal pairavam sobre uma enorme clareira na floresta tropical. Abaixo deles, crateras e poças lamacentas de esgoto marcavam o solo. Quando o esquadrão fortemente armado pousou, encontrou uma área desmatada do tamanho de 118 campos de futebol no interior da Terra Indígena Tenharim Marmelos e do Parque Nacional dos Campos Amazônicos, duas reservas que deveriam estar sob estrita proteção federal.
Rapidamente, eles incendiaram os acampamentos improvisados e o maquinário pesado usado pelos garimpeiros ilegais para extrair ouro do solo rico em minerais nas profundezas da floresta tropical. No total, as autoridades destruíram caminhões, motores, bombas e dragas no valor de 8 milhões de reais durante a missão, ocorrida em julho deste ano.
A ação, parte de uma operação apelidada de "Retomada", é a mais recente de uma série de tentativas do novo governo brasileiro para deter o rápido avanço do desmatamento e dos crimes ambientais que assolam o sul do estado do Amazonas, região que abriga alguns dos trechos mais bem preservados da Amazônia e alguns de seus rios mais importantes.
"Esta é uma região realmente crucial, tanto ecologicamente quanto para regular o clima. A floresta tropical é água. E conforme vemos o avanço do desmatamento, a floresta está secando",
diz Paulo Moutinho, cientista sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Os quatro municípios que enfrentam os maiores níveis de destruição nesta região — Apuí, Novo Aripuanã, Manicoré e Humaitá — registraram juntos mais de 1,25 milhão de alertas de desmatamento de alta confiança entre 1º de janeiro e 20 de junho, segundo dados de satélite da Universidade de Maryland visualizados na plataforma Global Forest Watch. Isso representou quase 60% dos alertas detectados no estado do Amazonas, conforme análise dos dados feita pela Mongabay.
"Esta é uma região com muito pouca presença do Estado", diz Virgilio Viana, superintendente da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e ex-secretário de Meio Ambiente do estado do Amazonas. A área tem visto uma explosão de extração ilegal de madeira, grilagem de terras, mineração de ouro, pecuária e expansão agrícola, diz ele. "E o impacto tem sido enorme."
Nos últimos meses, as invasões se intensificaram e avançaram para áreas protegidas como a Terra Indígena Tenharim Marmelos, ameaçando o modo de vida de comunidades que dependem da floresta para sobreviver e fragmentando um importante mosaico ecológico repleto de espécies vegetais e animais.
"Estamos cercados", afirma Daiane Tenharin, representante da Associação dos Povos Indígenas Tenharim Morogitá (Apitem), que tem monitorado as invasões por meio da tecnologia de sistema de informações geográficas (SIG). "Nossos líderes enfrentam ameaças constantes. Estamos sob ataque todos os dias."
A destruição que assola esta parte da Amazônia também destacou os desafios enfrentados pelo presidente Lula enquanto se esforça para desfazer as políticas de seu antecessor, Jair Bolsonaro, a quem muitos culpam por incentivar o desmatamento e os crimes ambientais.
"O governo herdou tudo em frangalhos. E deu os passos certos. Mas está se movendo muito devagar – e estamos ficando sem tempo para salvar a floresta antes que ela chegue a um ponto de não-retorno",
diz Moutinho.
Disputa histórica pela terra
Neste ponto remoto da Amazônia, invasores têm avançado sobre a floresta há décadas. A ocupação pode ser rastreada até a década de 1970, iniciada por um impulso da ditadura militar para povoar a região como forma de evitar a invasão estrangeira.
Tudo começou com a construção da rodovia BR-230, que cortou o coração da floresta tropical e a conectou à costa brasileira, cerca de 4 mil quilômetros a leste. Pouco depois, o governo também construiu a rodovia BR-319, atravessando a densa floresta de Porto Velho até Manaus.
"Foi um período em que não existia licenciamento ambiental. Portanto, não havia considerações sociais ou ecológicas",
diz Fernanda Meirelles, secretária-executiva do Observatório da BR-319, uma coalizão de ONGs brasileiras e internacionais que monitora o desmatamento ao longo da rodovia.
O par de rodovias desencadeou uma onda de desmatamento. Com a área mais acessível, uma onda de migrantes veio do resto do Brasil, atraídos por promessas de "terra sem homens para homens sem terra". Pecuaristas e agricultores correram para derrubar a floresta e transformá-la em pastagens e lavouras. Madeireiros ilegais abriram estradas de terra mais profundas na floresta, em busca de variedades valiosas de árvores.
O território do povo indígena Tenharim estava na linha de frente da pressão. Quando a BR-230 foi construída, ela cortou suas terras ancestrais, dando início a uma onda de invasão, destruição e conflito pela terra.
"Nossas terras estão sob ataque desde então", conta Daiane Tenharin, da aldeia Campinho, na Terra Indígena Tenharim Marmelos. "Não parou."
A disputa por terras nesta região continuou mesmo depois que o governo brasileiro demarcou um total de 1,06 milhão de hectares no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 como três reservas indígenas para o povo Tenharim. Os territórios também deveriam proteger os povos isolados Kaidjuwa e Igarapé Preto que vivem nessas florestas e para quem o contato com forasteiros – e as doenças que eles carregam – pode ser especialmente perigoso.
Mas, apesar dessas novas proteções, dezenas de colonos se instalaram ali, esperando que as terras que ocupavam ilegalmente fossem eventualmente reconhecidas como suas. Eles desmataram faixas de floresta, construíram casas e plantaram culturas, principalmente dentro da reserva Gleba B, que fica ao norte de Tenharim Marmelos e foi o último dos territórios Tenharim a ser oficialmente demarcado em 2012.
Hoje, cerca de 200 famílias vivem ilegalmente na parte sul da reserva Gleba B e cerca de 70% dessa área foi desmatada, de acordo com Daiane. "Eles colocaram cercas ao redor de suas fazendas… então não temos acesso a partes de nosso próprio território", diz ela. "Não há mais floresta, não há árvores altas. Tudo o que há agora é pasto."
Imagem de satélite capturadas em junho de 2023 pela Planet Labs mostra o desmatamento na parte sul da Gleba B da TI Tenharim Marmelos
Nova narrativa, fiscalização mais rigorosa
A destruição, ali e em outros lugares da Amazônia, só se intensificou quando Bolsonaro assumiu o poder em 2019, prometendo abrir terras protegidas para mineração, agricultura e pecuária. Sob seu comando, a fiscalização ambiental foi interrompida, as invasões de terras indígenas dispararam e o desmatamento na Amazônia atingiu níveis recordes em 15 anos.
"A ilegalidade obteve licença social do governo anterior", diz Viana. "E isso encorajou esses atores a agirem de forma mais agressiva."
O presidente Lula rapidamente começou a cumprir suas promessas de reverter o curso, deter o desmatamento e punir aqueles que invadem terras protegidas. Pouco depois de assumir o cargo, em 1º de janeiro, ele anunciou um novo ministério focado nos povos indígenas e ordenou uma série de operações policiais ambiciosas em toda a Amazônia.
Em apenas seis meses de presidência, há sinais de que a retórica mais verde de Lula pode estar tendo um impacto tangível nos crimes ambientais: os alertas de desmatamento caíram cerca de 39% entre janeiro e junho, segundo dados preliminares do Inpe.
Nos primeiros seis meses do ano, o Ibama realizou 390 operações na região amazônica, que resultaram em 8.092 autos de infração e mais de R$ 2,53 trilhões em multas, disse um porta-voz em uma declaração à Mongabay. O orçamento da agência para combater incêndios durante a estação seca, que nos últimos anos têm consumido vastas áreas de floresta primária na Amazônia, também aumentou 113% em relação ao ano passado.
No entanto, a visão de Lula para a Amazônia enfrentou forte resistência do Congresso, onde grupos alinhados com poderosos interesses agrícolas continuaram a minar as proteções. Em um golpe devastador para os ousados planos de Lula de acabar com todo o desmatamento ilegal até 2030, o bloco ruralista do Congresso deu um duro golpe nos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, reduzindo os financiamentos no final de maio.
"O novo governo já mudou a narrativa", diz Viana. "Mas ainda é uma tarefa muito desafiadora frear as dinâmicas que foram explicitamente encorajadas pelo governo anterior".
Os legisladores da Câmara dos Deputados também aprovaram vários projetos de lei controversos que diminuem a proteção ambiental e os direitos indígenas, incluindo um projeto de lei que só permitiria que os indígenas reivindicassem terras nas quais viviam fisicamente quando a Constituição do Brasil foi assinada em 1988, data limite conhecida como marco temporal. O projeto está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal.
O avanço do projeto de lei teve um impacto concreto no povo de Daiane Tenharim, diz ela. Encorajados por seu avanço, grileiros e garimpeiros começaram a invadir Tenharim Marmelos, a primeira reserva de seu povo a ser oficialmente demarcada em 1996, e por muito tempo a parte mais protegida do território Tenharim.
O marco temporal "só aumentou o interesse deles por nossas terras", diz Daiane. "Aqui na região o pessoal até comemorava. Dizem que, mesmo sendo Terra Indígena, isso criaria uma brecha".
Destruição avançada
Enquanto os legisladores travam uma queda de braço sobre a política ambiental, o desmatamento tem continuado praticamente implacável no Amazonas, o segundo estado mais desmatado da região nos primeiros cinco meses do ano, de acordo com uma análise do Imazon.
Nos últimos meses, a destruição atingiu importantes áreas protegidas, como a Floresta Nacional de Aripuanã, criada em 2016 para proteger povos tradicionais, garantir os recursos hídricos e preservar a rica biodiversidade da região. As invasões também se intensificaram em florestas públicas que ainda não estão sob proteção oficial do governo, diz Moutinho.
"Essas áreas não designadas são realmente vulneráveis. Elas permanecem em um limbo jurídico, onde as pessoas pensam que é uma terra de ninguém. Então elas entram e começam a desmatar",
diz ele.
Embora ainda estejam se recuperando recuperando de profundos cortes orçamentários nos últimos anos, as agências federais sinalizaram que não ficarão de braços cruzados. No início deste ano, o Ibama apreendeu 3 mil cabeças de gado de áreas embargadas, totalizando 25 mil hectares em Manicoré e Lábrea, que estavam ocupadas ilegalmente.
Gado cerca veículo do Ibama durante operação. Foto: Divulgação/Ibama
Na Floresta Nacional de Aripuanã, que também tem sofrido pressão, agentes federais já realizaram três operações e planejam novas missões, diz Karyna Angel, porta-voz do ICMBio, órgão federal que fiscaliza as Unidades de Conservação.
"A Floresta Nacional de Aripuanã está localizada na nova fronteira agrícola da Amazônia", escreveu ela em comunicado, observando que o desmatamento está comprometendo o desenvolvimento sustentável da região.
Sonia Guajajara, que chefia o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas, prometeu visitar os territórios Tenharim no próximo mês, percorrendo a região de helicóptero para avaliar a extensão da crise na área, diz Daiane.
No entanto, de maneira crucial, Lula ainda não deu um sinal claro sobre seus planos de pavimentar um trecho da rodovia BR-319 que corta o sul do Amazonas, deixando a porta aberta para a especulação sobre as terras.
O projeto da rodovia, destinado a melhorar um trecho degradado da BR-319 e facilitar o transporte de madeira – e, eventualmente, soja – para fora da região remota, está parado há anos devido a preocupações ambientais. Mas o projeto fez avanços importantes no governo Bolsonaro, estimulando um frenesi de grilagem especulativa de terras na região. Até agora, Lula se manteve ambíguo sobre o futuro do projeto.
O Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, responsáveis pela revisão do licenciamento ambiental do projeto, não responderam às perguntas da Mongabay sobre o status do projeto.
Questionado sobre o projeto, um representante do Ibama respondeu com uma declaração de que os órgãos federais estão preparando estudos ambientais, mas o processo "ainda está em um estágio muito preliminar". No entanto, o comunicado reconhece que o desmatamento nessa região tem aumentado, principalmente nas regiões de Humaitá e Apuí, que o órgão vê como "prioridades no combate ao desmatamento".
"Estamos trabalhando em várias estratégias de combate ao desmatamento, principalmente com o embargo de áreas desmatadas ilegalmente", diz o comunicado.
A pavimentação desse trecho da BR-319 corre o risco de gerar mais destruição, segundo Meirelles, inclusive dando origem à construção de estradas regionais a partir dela. Isso também seria um movimento simbólico, consolidando um modelo econômico destrutivo na região, construído em torno da soja, do gado e da madeira.
"A BR-319 é o caminho para ligar o Arco do Desmatamento a uma área que, até agora, tem sido protegida", afirma. "Isso certamente vai acelerar a ocupação da região".
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Ana Ionova e traduzido por Thaissa Lamha.