CORREDOR ECOLÓGICO E INDÍGENA O Parque Estadual de Guajará-Mirim abrange uma área de aproximadamente 200 mil hectares e é uma unidade de conservação de proteção integral. Segundo a legislação brasileira, este tipo de unidade de proteção ambiental tem as regras mais rígidas de uso, sendo permitido apenas uso indireto dos recursos naturais. Já as unidades de uso sustentável podem comportar atividades econômicas e de subsistência, desde que manejadas dentro de um conceito de respeito ao meio ambiente. O parque faz parte de um importante corredor ecológico em Rondônia que conecta várias unidades de conservação e terras indígenas. Ao norte, se limita com o território Karipuna, que por sua vez está ligado à Reserva Extrativista de Jaci-Paraná. Ao sul, estão a terra indígena Eru-Eu-Wau-Wau, várias outras reservas extrativistas e parques nacionais. “É um corredor não só rico de biodiversidade, mas de cultura, de identidade”, observa a indigenista Neidinha Suruí, da Associação Kanindé. Mas várias dessas áreas têm sido alvo de invasões. “O parque foi invadido, nosso território também, a Resex Jaci Paraná, que fica ao lado, também está invadida. Aí fica difícil porque não tem mais floresta, não vai ter mais floresta em pé”, alerta o cacique-geral do povo Karipuna, André Karipuna. Em incursões recentes à borda sul de seu território, exatamente onde a terra indígena faz fronteira com o parque, a liderança encontrou vestígios da existência, nessa região, de povos tradicionais isolados. “Se nós estamos ameaçados, imagina os parentes isolados”, preocupa-se. Suruí, que participa de expedições em busca de vestígios, corrobora. “Acreditamos que esses indígenas estão num grupo extremamente reduzido, ou foram mortos ou expulsos dali [por conta das invasões]”. Na visão do Desembargador Marcos Alaor Diniz Grangeia, que mandou investigar a conduta de Soares, havia “interesse do próprio magistrado no deferimento do pleito de manutenção de posse, dada a relação negocial que possuía com o proprietário da Fazenda Cantão.” Soares ainda decidiria restituir um trator, uma carreta e outros bens ao infrator ambiental em outros processos judiciais nos quais suas decisões foram questionadas. Mas, segundo as autoridades, Teixeira não era mero arrendatário, nem eventual parceiro de negócios de Hedy Carlos Soares. Uma investigação sobre outra sentença do ex-juiz, tomada em 2020, revelou a existência de um “grupo de pecuaristas” no qual ele estaria incluído e sobre os quais recaem suspeita de fraude, sonegação de impostos e ocultação de patrimônio, “configurando, em tese, crimes de falsidade ideológica, sonegação fiscal, associação criminosa e possível lavagem de capitais”, segundo concluiu um investigador em 2022. Esse caso ainda não possui decisão final e corre em sigilo de justiça. Entre os integrantes de tal grupo, segundo as investigações, estão tanto Erivan da Silva Teixeira como seu cunhado, Walvernags Cotrin Gonçalves – o homem preso em novembro de 2023 por invasão do Parque Estadual de Guajará Mirim e de quem a polícia confiscou as 605 cabeças de gado que estavam na unidade de conservação. A reportagem procurou os advogados de Hedy Carlos Soares, Walvernags Cotrin Gonçalves e Erivan da Silva Teixeira para ouvir suas explicações – mas apenas a Defensoria Pública de Rondônia, que está atuando em nome de Teixeira nos processos, respondeu. O órgão explicou, no entanto, que apesar de ter sido designado para esta função, “não teve qualquer contato com o réu”, e que a legislação brasileira impede o compartilhamento de contatos diretos dele. A íntegra pode ser lida aqui. Em outra coincidência semelhante, o balanço informa a venda de 20 vacas ao frigorífico no dia 25 de março de 2022 – mesma data em que registros de GTAs apontam a JBS como destinatária de uma remessa de animais da Chácara Mãe e Filha com as mesmas características. O balanço de animais que descreve essas transações não menciona a Chácara Mãe e Filha, mas apenas a Fazenda Prosperidade, localizada também em Buritis e, esta sim, oficialmente registrada em nome do ex-juiz Soares. Em 2019, ela teria recebido, segundo o MP, centenas de animais para engorda oriundos da Fazenda Cantão, localizada dentro do Parque Estadual de Guarajá Mirim. O próprio Walvernags Cotrin Gonçalves, o homem do gado apreendido em novembro dentro do parque, forneceu animais diretamente para a JBS de Vilhena e de Pimenta Bueno em 2021 e 2022, e para a Marfrig de Ji-Paraná entre 2020 e 2021. Nesse período, o Sítio Oliveira – fazenda de Gonçalves registrada como fornecedora dos frigoríficos – recebeu repetidamente remessas de gado de propriedades cujo endereço as situam no limite do Parque Estadual de Guajará-Mirim e também da Fazenda Prosperidade e da Chácara Mãe e Filha. A JBS informou que tanto o Sítio Oliveira como as propriedades em nome de Andréia Sinotti – Chácara Mãe e Filha e a Fazenda Sombra da Mata – “encontram-se atualmente bloqueadas” e que os negócios feitos no passado seguiram os protocolos de compra responsável do frigorífico. A Marfrig também admitiu ter comprado animais de Walvernags Cotrin Gonçalves em 2020 e 2021, mas também afirma que a propriedade “não possuía nenhuma inconformidade com os critérios socioambientais” – e ressaltou ainda que “encerrou suas atividades em Ji-Paraná (RO) em setembro de 2021”. “As eventuais irregularidades apontadas pela Repórter Brasil eram praticadas em elos anteriores da cadeia”, acrescenta a JBS, o que, na opinião do frigorífico, “reforça a urgência de endereçar o desafio setorial de monitorar toda a movimentação de gado bovino, visto que as empresas processadoras de proteína não têm acesso às GTAs de outros elos da cadeia produtiva, impedindo que tenham visibilidade sobre práticas irregulares como as apontadas pela reportagem”. As notas podem ser lidas integralmente aqui. Andréia de Lima Sinotti não quis comentar. Os demais pecuaristas mencionados não enviaram respostas aos questionamentos enviados a seus advogados. Walvernags Cotrin Gonçalves seria, segundo as autoridades, um desses invasores insistentes. Ele teve a prisão preventiva decretada depois de ter sido detido em três oportunidades anteriores – em todas, liberado pelo delegado de plantão. “Não bastasse isto, Walvernags inicialmente destruiu e, após, com a inserção de gado, que utilizava parte dessa importantíssima Unidade de Conservação como pastagem, impediu ou ao menos dificultou a regeneração natural de aproximadamente 459,11 hectares de floresta”, registra uma decisão judicial negando sua soltura. A área antes ocupada por Walvernags, segundo as autoridades, tem sinais visíveis do que seria sua atividade: uma cerca antes destruída pela polícia que ele teria reconstruído, parafusando plaquinhas de metal para unir as partes serradas pela autoridade, pasto plantado, e os bois, que até abril eram vigiados 24 horas por dia pelo batalhão de choque de Rondônia. “Esta noite ouvimos gente chamando o gado para tentar levar e, uma semana atrás, um drone ficou sobrevoando a área para contar quantos bezerros haviam nascido”, explica o sargento Francinei Mendes, que estava de plantão na tarde em que a Repórter Brasil esteve por lá. Em abril, o comandante Chagas conseguiu uma autorização judicial para retirar os bois da área. Mobilizou o efetivo, percorreu com o rebanho três quilômetros entre essa área do parque e o curral do invasor, onde estavam esperando os caminhões que levariam os animais para uma entidade assistencial, que os receberia como doação. Os vaqueiros que conduziram o gado estavam com o rosto coberto para não serem identificados e foi preciso desligar o sistema de câmeras de propriedades do entorno “pois os mesmos temiam pela sua integridade física”, relata o boletim de ocorrência da ação. O temor tinha uma razão, segundo o documento: uma tentativa anterior de retirada dos animais havia sido feita ainda em 2023. “Na última hora, a empresa de transportes contratada recuou. O proprietário disse que havia recebido telefonemas com ameaças de morte, caso levasse embora os bois”, lamenta Chagas. |