Advogada é estuprada após encontro via Tinder
A advogada Ana Lúcia Keunecke, 43 anos, já foi estuprada três vezes. A primeira, quando tinha 8 anos, por um primo mais velho. A segunda aconteceu aos 23, depois que um “amigo” lhe ofereceu carona. E, por fim, no dia 21 de agosto deste ano, após marcar um encontro pelo aplicativo Tinder.
Antes da última experiência, Ana Lúcia já usava a sua história para ajudar outras mulheres. Se especializou em direitos sexuais e reprodutivos femininos para apoiar outras vítimas. “Minha vida era uma até o segundo caso acontecer comigo, depois se tornou outra. Mudou meu caminho e o meu olhar nunca mais foi igual”, revelou ao Metrópoles.
Por isso, quando foi estuprada pela terceira vez, o choque foi maior. “Sou militante, luto contra isso, sei como tudo funciona e todos os meus direitos. Não imaginava algo assim acontecendo comigo de novo”, revela.
Como relatou à revista Marie Claire, Lúcia se separou após 19 anos de casamento. Quando estava preparada para sair com outras pessoas, entrou no aplicativo de relacionamento. Conheceu um homem com quem trocou mensagens durante semanas, chegando inclusive a pedir RG e CPF, que foram prontamente enviados. Os dados, entretanto, eram falsos, ele enviou os documentos de um jogador famoso – mas isso ela só foi descobrir depois.
Quando se sentiu segura, a advogada convidou o pretendente para ir à sua casa. “Transamos e ele foi gentil. Lá pelas três horas da manhã, ele estava na varanda do meu apartamento e eu, nua, deitada na cama. Ele voltou agressivo. De uma maneira bem chula, falou que ia fazer sexo anal”, relata a vítima.
“Não queria, sugeri que a gente fosse dormir. Logo ele se debruçou sobre mim, segurou meu pescoço, o virou para não me sufocar no travesseiro e fez sexo anal. Pedi que parasse, mas ele respondia: “Fica quietinha”. Implorei novamente. Mas percebi que minhas reclamações não adiantavam nada. Ele fez sexo vaginal também. Fiquei olhando para um ponto fixo esperando aquilo tudo acabar”, relembra Ana Lúcia.
Quando finalmente o estuprador terminou o abuso, ela reparou que a região anal estava sangrando e entrou perplexa no banho. Ao sair do banheiro, o homem estava se vestindo e alegou não ter dinheiro para ir embora. Para se livrar rapidamente dele, Ana deu uma quantia.
“Me vesti para ir a um hospital referência no acolhimento de mulheres vítimas de violência sexual, em São Paulo. Precisava fazer a profilaxia, procedimento sugerido a todas as vítimas desse tipo de crime. Chamei um táxi e, quando disse o destino, chorando, o motorista perguntou se eu não preferiria ir à delegacia. Falei que não. No caminho, foi caindo a ficha que eu tinha sido estuprada”, relembra.
Chegando ao hospital, o guarda da recepção pediu o Boletim de Ocorrência. “Não tinha feito. Mas faço o alerta às mulheres: vocês não precisam de B.O. para receber o tratamento”, explica a advogada.
Ana Lúcia foi bem atendida durante todo o procedimento. Desde o porteiro até a recepcionista, que segurou sua mão. A única exceção foi o médico que a atendeu e fez seu prontuário. Ali enfrentou a primeira dificuldade.
O especialista classificou o ato como “abuso sexual” no CID (Classificação Internacional de Doenças). Ao reclamar, ouviu: “Não tem erro nenhum. Você permitiu a pessoa entrar na sua casa”. Somente depois de muita discussão – e por conhecer seus direitos –, Ana conseguiu que o médico mudasse para “estupro mediante violência”.
A advogada pretende fazer uma reclamação formal sobre o atendimento recebido, para que o profissional seja orientado e capacitado. Dessa forma, ela espera que outras mulheres não passem por situações semelhantes na unidade hospitalar.
Precisamos conversar
Ana Lúcia decidiu contar a sua história para ajudar outras mulheres. Ainda no hospital, um dos melhores do Brasil para esses casos, ficou faltando uma medicação da profilaxia: a imunoglobulina humana, usada para hepatite B e sífilis.
Por acompanhar mulheres e crianças na mesma situação, ela sabia que precisava e tinha direito ao remédio. Acionou a rede de contatos e conseguiu tomar a medicação em outro centro de saúde. Ficou a dúvida: imagine as centenas de mulheres que são estupradas todas as semanas e não têm acesso ao procedimento completo?
“Os efeitos colaterais dos remédios são fortíssimos. Não tinha fome, inchei nove quilos em uma semana e passei 10 dias seguidos vomitando, com um balde ao meu lado. Estava exausta a ponto de achar que havia entrado em depressão”, revela.
Os sintomas eram efeitos colaterais do tratamento e do trauma, mas ninguém explicou a ela sobre essas consequências. “Sou privilegiada e tive o apoio da minha rede de amigas e, principalmente, do meu ex-marido, a quem honro e sou grata. Eles se revezaram para cuidar de mim 24 horas por dia. Fiquei pensando nas mulheres que não têm essa ajuda”, reflete a advogada.
Quando tornou o caso público, ela achou que era uma exceção. Mas recebeu uma quantidade enorme de relatos semelhantes. Mulheres de todas as partes do Brasil já foram estupradas, até mais de uma vez, por homens que conheceram por aplicativos como o Tinder e o Happn. “A realidade é muito triste e a sociedade precisa pensar sobre isso”, desabafa.
Após reunir essas histórias, encaminhou uma denúncia ao Ministério Público e à Defensoria Pública de São Paulo e já teve resposta que vão abrir procedimento. As mensagens que ela tem recebido pelas redes sociais com ameaças de estupro e grosserias que configuram crime cibernético, ela mandou para a Polícia Federal.
Ana não registrou Boletim de Ocorrência porque ela sabe que, por mais que seja bem atendida por uma delegada ou por uma promotora – e ela conhece muitas –, o processo nesses casos é complicado. “Eu não tenho prova do não consentimento. Eu tenho provas das minhas feridas, do atendimento médico. Mas em um país onde a justiça é patriarcal, masculina, a gente vê casos notórios e públicos de agressões sexuais que são tratados como menores. Como uma mulher que sabe seus direitos vai lá se expor sem ter provas? Não vai conseguir. Fica sempre a palavra da mulher contra a palavra do homem”, disse.
Para ela, esse silêncio e sofrimento deixa marcas profundas na vida da vítima e de sua família. A intenção da advogada é deixar a reflexão: imagina a mulher passando por isso, precisando trabalhar sem poder contar sobre o ocorrido, encontrar colegas pelos corredores e disfarçar os efeitos colaterais? “Tem que ter um jeito de minimizar a dor dessas vítimas”, defende.
A gente precisa acabar com esse tabu. O estuprador é um homem comum, não um monstro. E também não se trata apenas de sexo, porque sexo eu já tinha feito. É uma questão de abuso de poder. Esse agressor me estuprou e ferrou a minha vida."
Ana Lucia Keunecke
O estuprador desfez o perfil e Ana Lúcia também saiu do Tinder.
Resposta do Tinder
O aplicativo de relacionamento se posicionou publicamente sobre o caso. Leia a íntegra do comunicado:
Estamos profundamente tristes com esta notícia, e nossos pensamentos estão com a vítima. Pessoas mal-intencionadas existem em restaurantes, livrarias, nas redes e nos aplicativos sociais. Embora a grande maioria dos nossos usuários tenha boas experiências em nossa plataforma, não somos imunes a malfeitores.
Encorajamos que o usuário que tenha sido vítima de crime reporte o caso para as autoridades locais. Iremos cooperar com as autoridades no que for preciso para auxiliar nas investigações. Além disso, recomendamos aos nossos usuários que conheçam nossas dicas de segurança, disponíveis on-line e no aplicativo, e denunciem qualquer atividade suspeita no próprio app ou pelo e-mail help@gotinder.com. |