Em março, a prefeitura de São Paulo lançou um site que perguntava aos paulistanos os sonhos que tinham para a cidade nas próximas décadas. O objetivo era colher ideias para nortear o desenvolvimento local até 2054, quando a metrópole completará 500 anos de fundação. O chamado recebeu mais de 23.000 colaborações escritas online nos dois meses seguintes. A maioria era sobre segurança pública e trânsito, problemas críticos na capital paulista, mas houve também sugestões de novos conjuntos habitacionais, postos de saúde, creches e centros de lazer.
Os dados foram tabulados por técnicos da prefeitura com assessoria da startup Colab, que mantém um aplicativo para as pessoas relatarem problemas urbanos, da organização social Comunitas e da consultoria de gestão McKinsey. As informações viraram pauta de audiências públicas, que sinalizaram quais projetos de melhoria urbana deveriam ser implantados pelo prefeito João Doria (PSDB) e o que deveria ficar para as próximas gestões. “Até o fim do ano, vamos lançar um livro que queremos que sirva de ‘manual de bordo’ para quem estiver à frente da prefeitura paulistana até 2054”, diz Paulo Uebel, secretário de Gestão de São Paulo, responsável pelo programa.
Algumas medidas já estão em vias de sair do papel. Em setembro, a prefeitura anunciou investimentos para equipar a Guarda Municipal, que vai reforçar as tarefas de ronda e policiamento ostensivo em lugares públicos — atualmente, a força tem como foco a proteção de prédios da própria prefeitura. Até o fim da gestão atual, em 2020, o objetivo é diminuir em 10% os crimes de oportunidade, como são chamados os furtos a pedestres, que subiram 10% nos cinco primeiros meses do ano.
São Paulo é referência em planejamento de cidades no Brasil, e isso garante a ela pontos extras em levantamentos sobre os melhores lugares para fazer negócio no país. Em 2008, os vereadores paulistanos foram pioneiros em aprovar uma lei que obriga os gestores públicos a demonstrar num programa de metas, logo no início de cada gestão, as prioridades para os quatro anos seguintes, os indicadores que atestarão se elas foram cumpridas e os recursos necessários para cada projeto. Na capital paulista, três prefeitos já passaram pelo sistema, que pressupõe demonstrar para a população de onde virá o dinheiro para cada novo investimento: Gilberto Kassab (PSD), Fernando Haddad (PT) e, agora, João Doria. O resultado disso é mais controle sobre as finanças públicas e menos risco de a prefeitura sofrer de má gestão fiscal. Em São Paulo, as dívidas municipais corresponderam a 90% das receitas em 2016, segundo dados levantados pela consultoria Urban Systems, especializada no desenvolvimento das cidades. No ano anterior, a proporção era de 180%. “São valores ainda altos, mas em trajetória de queda, o que demonstra uma cidade a caminho do equilíbrio fiscal”, diz Thomaz Assumpção, presidente da consultoria. Toque para ampliar
Desde 2014, a Urban Systems elabora, a pedido de EXAME, um ranking dos 100 municípios brasileiros que reúnem as condições mais favoráveis para a instalação de empresas. São considerados os que têm mais de 100 000 habitantes. “Cidades em que a sociedade civil é provocada a pensar no futuro costumam ter bons indicadores sociais e ser bons locais para fazer negócio”, afirma Assumpção.
Neste ano, São Paulo tomou o lugar da bicampeã Barueri, localizada em sua região metropolitana. No levantamento da Urban Systems são checados 28 indicadores de desenvolvimento social, capital humano, infraestrutura e desenvolvimento econômico. A melhoria dos indicadores fiscais, somada à abundância de universidades e escolas técnicas e à maior oferta de transporte público no Brasil, deu a São Paulo o título de melhor cidade para fazer negócio. Fábrica de celulose em Três Lagoas: a cidade sul-mato-grossense é um oásis de empregos | Fabiano Accorsi
INSPIRAÇÃO INTERNACIONAL
Há outros municípios brasileiros seguindo o exemplo de planejamento. Mais de 50 cidades no país instituíram por lei programas de metas como os de São Paulo, obrigando cidadãos, vereadores e gestores públicos a pensar no futuro das cidades. Em algumas delas, como Belo Horizonte e Niterói, além de apresentar os objetivos para a administração em andamento, os gestores também se propuseram a desenvolver planos estratégicos para 20 ou 30 anos à frente.
Entre as 100 maiores cidades brasileiras, a consultoria Macroplan mapeou 15 que já têm planejamento de longo prazo. “Quando há uma combinação de boa liderança e cobrança da sociedade, planos desse tipo dão muito resultado”, afirma Claudio Porto, diretor da Macroplan. A inspiração para as cidades brasileiras são as grandes metrópoles reconhecidas mundialmente pelos bons indicadores sociais e econômicos. Nova York, por exemplo, lançou um primeiro plano estratégico em 2007, durante a gestão do prefeito Michael Bloomberg. É uma tentativa de preparar a cidade para receber cerca de 1 milhão de novos moradores até 2030.
Uma série de objetivos foi estabelecida no PlanNYC, como construir moradias acessíveis e sustentáveis para os novos habitantes, assegurar que cada um deles more a uma distância de até 10 minutos de caminhada de uma área verde e reduzir 75% do descarte de lixo em aterros. Toque para ampliar
Não é preciso ser uma metrópole como Nova York ou São Paulo para perceber a importância de planejar o futuro. Mesmo pequenas cidades do interior têm feito as primeiras investidas nessa direção. É o caso de Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul, com seus 113 000 habitantes. A cidade é sede de duas das maiores fábricas de papel e celulose do país: a Fibria, que se instalou lá em 2009, e a Eldorado, três anos depois. Os investimentos tornaram Três Lagoas um oásis de geração de empregos em meio à crise econômica e dobraram o tamanho da população. Em 2016, o saldo de contratações foi de 3.500 postos de trabalho, o mais alto entre os municípios pesquisados.
O bom resultado se refletiu no levantamento da Urban Systems. Três Lagoas foi a melhor no quesito desenvolvimento econômico e subiu 16 lugares no ranking geral de melhores cidades para fazer negócio, chegando ao 62o lugar neste ano. Mas a expansão também trouxe problemas: a extensão da mancha urbana aumentou 36% nos últimos dez anos. Os novos moradores optaram por viver em casas construídas em loteamentos abertos às pressas e sem infraestrutura de asfalto, esgoto tratado e iluminação.
No ritmo atual, a mancha urbana aumentará em mais 50% até 2030, quando a cidade deverá ter 220.000 habitantes. O resultado de uma cidade espalhada é que o poder público precisa gastar mais para garantir qualidade de vida aos cidadãos — se a expansão continuar sem freio, será necessário 1,7 bilhão de reais extras nas próximas duas décadas para levar infraestrutura a toda Três Lagoas.
Por isso, desde o ano passado, mais de 1 000 moradores foram entrevistados sobre o que almejariam para a cidade até 2030, num projeto chamado de Três Lagoas Sustentável, financiado pelo Banco Mundial e por grandes empresas com operação local. As ideias que surgiram das entrevistas ajudaram a traçar cenários alternativos — e mais baratos — para a expansão urbana de Três Lagoas.
Num deles, em que a abertura de loteamentos seria limitada e a construção de prédios residenciais estimulada com leis de zoneamento mais flexíveis, o custo da prefeitura para universalizar os serviços públicos cairia para 700 milhões de reais até 2030. A pressão popular fez com que o material servisse de base para o novo Plano Diretor da cidade, aprovado no primeiro semestre deste ano. “Todos os estudos originados no projeto deverão nortear o planejamento e a melhoria da administração pública”, diz o prefeito Angelo Guerreiro (PSDB).
A criação de planos de longo prazo tem sido impulsionada também por iniciativas globais. No Brasil, o programa Cidades Sustentáveis, executado por entidades como a Rede Nossa São Paulo e o Instituto Ethos, estimula os municípios a desdobrar para si os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, lançados em 2015 pela ONU.
Trata-se de uma extensa lista de metas que cada país se comprometeu a perseguir para promover a inclusão social, o desenvolvimento sustentável e a governança democrática no mundo até 2030. “É preciso encontrar um elemento mobilizador como esse para encorajar os prefeitos a planejar”, diz Jorge Abrahão, coordenador do programa, que oferece orientação às cidades interessadas. “Adotar essa agenda significa melhorar a relação com a sociedade, evitar o desperdício de dinheiro e conseguir acesso a novas fontes de recursos.” Avenida em Salvador: a capital baiana discute um plano para 2049, quando fará 500 anos | iStock Unreleased/Getty Images
Antever os problemas para solucioná-los de maneira ordenada é uma novidade na maioria das cidades. Nas mais jovens, como Sinop, em Mato Grosso, a resistência felizmente parece ser menor. Fundada nos anos 70, Sinop foi batizada com a sigla da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná, que desenhou o traçado e desenvolveu a ocupação da região. “Somos uma cidade que nasceu do planejamento”, diz a prefeita Rosana Martinelli (PR). Mesmo assim, quando a administração decidiu elaborar o primeiro plano estratégico do município em 2012, foi preciso partir do básico — os funcionários da prefeitura desconheciam conceitos de gestão e não sabiam como acompanhar os resultados.
Para entender melhor como as coisas funcionam, a opção foi adotar um plano curto, com data marcada para acabar, em 2016. A ferramenta deu tão certo que, agora em outubro, a prefeitura deve lançar uma nova versão — desta vez, com um horizonte de 20 anos. O documento lista 13 objetivos, como garantir educação de qualidade, assegurar o crescimento urbano ordenado e elevar a receita do município, desdobrados em mais de 50 metas pontuais. Em cada uma delas, é apontado o indicador que deve ser monitorado para mostrar se os esforços estão funcionando ou não.
O desenvolvimento de um plano estratégico em Sinop foi parte de um programa de apoio aos municípios de iniciativa do Tribunal de Contas mato-grossense. “Fazemos planos estratégicos para o tribunal desde 2006. A melhoria em nossa gestão nestes dez anos foi tão grande que resolvemos apresentar a ferramenta também para as cidades”, diz Naíse Freire, coordenadora do projeto.
A primeira leva de municípios selecionados para participar abrangia os maiores do estado — com 135.000 habitantes, Sinop foi a terceira colocada no quesito desenvolvimento econômico do ranking da Urban Systems. Seus gestores receberam treinamento, acompanhamento de uma consultoria contratada pelo Tribunal de Contas e acesso gratuito a um sistema de controle das metas. Outras cidades foram acrescentadas ao grupo aos poucos — a ideia é chegar a 40 delas planejando o futuro.
Cada vez mais gestores públicos percebem que pensar no futuro é importante — mas qual é a chance de planejamentos de cidades serem efetivos, e não um mero amontoado de aspirações? Qual é o risco de as cidades planejarem demais — e executarem de menos? “A burocracia retarda as decisões porque quer ter todas as respostas antes. Mas um planejamento para uma cidade é, antes de tudo, um compromisso com a simplicidade e a imperfeição”, afirma Jaime Lerner, urbanista que tornou Curitiba uma cidade-modelo em planejamento urbano e mobilidade quando foi seu prefeito, nos anos 70.
Mais que uma montanha de dinheiro, a inovação, para acontecer, precisa ter espaço para começar. O caso dos corredores exclusivos de ônibus em Curitiba — hoje sendo implantados em mais de 250 cidades pelo mundo — é uma prova. “Na época, acreditava-se que uma cidade com 1 milhão de habitantes precisava ter um metrô, coisa que não tínhamos recurso para construir. O essencial foi começar com uma linha de ônibus para apenas 50 000 passageiros por dia, para entender que a solução mais simples também podia funcionar”, afirma Lerner. Sinop, em Mato Grosso: a cidade, forte no agronegócio, começou a planejar seus próximos 20 anos
Em Salvador, a tentativa de planejar e agir ao mesmo tempo tem direcionado esforços da prefeitura. Está sendo elaborado um plano estratégico, o Salvador 500. Como no caso de São Paulo, a ideia é pensar a cidade quando ela completar 500 anos, em 2049. Seus objetivos são amplos, como tornar Salvador uma metrópole menos desigual, reestruturar a mobilidade urbana e promover a sustentabilidade.
Enquanto audiências públicas, diagnósticos e estudos acontecem de um lado, de outro a administração começou a trabalhar num plano para resolver uma série de pequenos gargalos institucionais rapidamente — o Salvador 360, como é chamado, abrange 360 ações e investimentos de 3 bilhões de reais que serão finalizados até 2020, quando termina a gestão do prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM).
“Adotamos um viés mais fazedor e menos aspiracional. Algumas ações são muito pequenas, e outras enormes, mas, se elas tiverem um impacto real na economia da cidade em dez ou 20 anos, entram no plano”, diz Guilherme Bellintani, secretário de Desenvolvimento e Urbanismo de Salvador. São iniciativas como a simplificação do sistema de licenciamento de obras, um mutirão de regularização fundiária e parcerias para oferecer microcrédito a empreendedores de baixa renda.
Assegurar a sobrevivência de planos de longo prazo é um desafio enorme num país como o Brasil, que ainda não conseguiu construir uma cultura de continuidade de gestões. “Em desenvolvimento de cidades, muito pouco se faz em uma só gestão”, diz o urbanista Carlos Leite, diretor de intervenções da SP Urbanismo, empresa ligada à prefeitura paulistana. Cidades colombianas, como Bogotá e Medellín, conseguiram sair do fundo do poço em duas décadas porque tiveram gestões seguidas que mantiveram os projetos, focados principalmente em mobilidade e segurança pública.
Nesse período, elas foram capazes de construir plataformas para que os cidadãos acompanhassem os resultados das intervenções e dessem visibilidade aos projetos. “A divulgação do trabalho foi tão grande que conquistou os cidadãos. Agora é difícil um novo prefeito simplesmente ignorar o que já está planejado”, afirma Leite. No Brasil, talvez seja hora de preparar a legião de cidadãos-fiscais para seguir de perto o que as prefeituras, com seus primeiros planos verdadeiramente de longo prazo, conseguirão entregar.
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