Mirabela, de 13,5 mil habitantes, no Norte de Minas, é famosa pela qualidade da carne de sol que produz. A cidade também ganhou notoriedade por ter sido fundada em área “doada” para São Sebastião, o padroeiro do município, no fim do século 19.
A doação foi oficializada em cartório, em nome do santo. Assim, a população local se acostumou com a falta de escritura dos seus imóveis porque as casas foram erguidas na “terra do santo”, administrada pela Igreja Católica.
A condição de “terra do santo” deu repercussão na imprensa internacional a Mirabela, onde a estimativa é de que metade dos cerca de 9 mil imóveis não é regularizada. Em 1972, a cidade ganhou destaque na extinta revista O Cruzeiro.
A polêmica não se restringe ao fato de moradias e comércio do município se situarem em terreno cujo “dono” é um mártir e santo cristão – que viveu no século 3 e foi perseguido e morto pelo imperador romano Deocleciano –, mas também a uma questão de interesse econômico: nas décadas de 1970, 1980 e 1990, gestores municipais travaram batalhas jurídicas com a Igreja, tentando anular da Igreja do santo e fazer a transferência para os ocupantes dos imóveis, para que pudessem cobrar IPTU e outros tributos. Mas até hoje as terras continuam sob o domínio da Igreja.
”Nunca tive um cheque devolvido, mas o banco não faz empréstimo se a gente não tiver a escritura registrada em cartório”
Antigos moradores vivem no Centro da cidade, perto da igreja de São Sebastião, onde surgiu o núcleo urbano há mais de 130 anos. Moradores de outras áreas da antiga Bela Vista de São Sebastião, há décadas, também ocupam casas e terrenos não escriturados porque os loteamentos foram criados sem obedecer aos critérios legais
A situação começou a mudar com a Lei 13.465/2017, de Regularização Urbana (Reurb), quando foi iniciada a regularização fundiária, viabilizada por parceria da prefeitura com a organização não governamental Instituto Cidade Legal.
A entidade fez levantamento que apontou cerca de 3,5 mil a 5 mil imóveis sem documento legal de posse, segundo o seu presidente, Evandro Antunes Lopes. Como o município tem em seu cadastro cerca de 9 mil imóveis, a estimativa é que a metade dos proprietários de lotes, residências e estabelecimentos comerciais de Mirabela não tem as escrituras dos imóveis. Segundo ele, além da “terra do santo”, foram instalados três loteamentos sem os mecanismos legais e os moradores receberam apenas recibos ou contratos de compra e venda, sem títulos de posse.
”A Igreja nunca ameaçou tirar ninguém daqui, mas a gente precisa da escritura”
A regularização começou em abril de 2018. O secretário municipal de de Mirabela, Márcio Lopes, informou que 917 proprietários já formalizaram contratos com o Instituto para legitimar a posse, sendo que 300 estão na área da “terra do santo”.
A entidade informou que já regularizou 250 propriedades, faltando ainda o registro da escritura em cartório da maioria deles. Mas entre os contemplados até agora não há nenhum da área da área doada para São Sebastião. Isso porque ainda existem pendências com a Arquidiocese (Mitra Diocesana) de Montes Claros, que administra os terrenos do santo em Mirabela, sem que tivesse feito o “desmembramento da gleba”.
“As tratativas com a Arquidiocese (de Montes Claros) são amistosas. Não existe nenhum interesse do município e certamente também da Igreja de colocar óbice ou criar atrito, mas resolver uma situação que é de responsabilidade do poder público e da arquidiocese”, afirmou Lopes.
”Comprei esta casa há 25 anos, mas só base do contrato. A escritura dá segurança pra gente”
O advogado Ruan Rodrigues, do Instituto Cidade Legal, disse que, pelas normas da Reurb, é preciso notificar outro envolvido com a mesma área, que tem 30 dias para impugnação do processo de regularização e apresentar os seus argumentos. A partir daí, o município pode adotar outras providências jurídicas. Segundo ele, a prefeitura notificou a Mitra Diocesana sobre a regularização fundiária da “terra do santo”.
Questionada pela reportagem, a assessora jurídica da Mitra Diocesana de Montes Claros, Roseli Soares Ribeiro, disse que enviou resposta à prefeitura. “A Mitra Arquidiocesana de Montes Claros apresentou resposta ao procedimento de iniciativa do município de Mirabela e aguarda o regular trâmite do feito”, afirmou Roseli. Moradores informaram que a Mitra Diocesana, quando procurada pelos ocupantes dos imóveis, concedeu documentação para a retirada da escritura, mas cobrou determinado valor pela “liberação”.
O secretário Márcio Lopes ressalta que a prefeitura formalizou a parceria com o Instituto Cidade Legal para contar com equipe técnica capacitada para a regularização fundiária para as famílias de baixa renda. “Todo cidadão que julgar ter o direito de posse pode requerer a legitimação independentemente do instituto. Mas o fato é que as exigências legais impõem certas condições ao pleito individual e fica caro para o cidadão contratar um advogado, um engenheiro ou topógrafo, para fazer um único processo”, disse.
Ainda segundo ele, a parceria foi “a maneira mais econômica” para legalizar imóveis. “O interessado faz o pagamento de R$ 500 ou R$ 600 em até 10 parcelas e todo o processo é feito pelo instituto e, depois de devidamente conferido por nossos engenheiros e por uma comissão, se dá a homologação pelo município e o processo é remetido para o cartório”, explicou. Lopes ressalta que, além de beneficiar os proprietários, a “escrituração” vai gerar aumento da arrecadação do município.
Sem papel, com aflição
O comerciante Elias Soares da Fonseca, morador de Mirabela, no Norte de Minas, reclama que já tentou fazer empréstimos bancários. Ele conta que quis ajudar um filho, que precisou de financiamento de R$ 400 mil para investir em loja em Montes Claros, mas lamenta ter sido “excluído” do crédito bancário pela falta de garantia de pagamento, que seria feita com o uso imóvel onde sua família tem loja. “Pago minhas obrigações. Nunca tive um cheque devolvido. Mas o banco não faz empréstimo se a gente não tiver a escritura registrada em cartório”, reclama.
O estabelecimento do comerciante é um das centenas de imóveis de Mirabela doada a São Sebastião. Por isso, há décadas são ocupados pelos moradores, que têm somente os contratos de compra e venda. Elias conta que adquiriu a propriedade há 26 anos e que, agora aguarda receber a escritura, depois que a prefeitura iniciou o processo de regularização.
Dono de uma barbearia, Iraídes de Jesus Rodrigues Lopes diz que também espera finalmente ter a escritura. “A Igreja nunca ameaçou tirar ninguém daqui, mas a gente precisa da escritura.” O casal de bancários aposentados Petronilha Alkmin e Afonso Souza Guimarães vive em casa, onde já funcionou uma farmácia, também na “terra do santo”. Ela relata que o imóvel foi herdado do pai, que adquiriu “o direito de posse” e agora aderiu ao processo de regularização. “Contar com o imóvel documentado é uma coisa fundamental. Além do mais, é uma segurança para as futuras gerações”, observa a aposentada.
O aposentado Melchior Fonseca Maia, de 87 anos, tem em casa uma imagem de São Sebastião, do qual é devoto. Mas, como outros moradores da parte mais antiga de Mirabela, não tem a escritura da moradia, exatamente porque o terreno foi “doado” para o santo. Uma equipe técnica que faz levantamentos já realizou medições na casa do aposentado para “escrituração” do móvel, mas ele disse que, “até o momento, ainda não aderiu ao processo de regularização fundiária, deixando a entender que ainda pretende fazer isso. A professora Élvia Pereira Maia, filha de Melchior, afirma que não está preocupada em conseguir a escritura da casa onde mora no Centro de Mirabela. “Pois a terra é do santo”, justificou.
‘FOI UMA BÊNÇÃO’
O caminhoneiro José Antônio da Silva recebeu recentemente a escritura da casa onde mora, no Bairro São José. “Comprei esta casa há 25 anos, mas só base do contrato. A escritura dá segurança pra gente”, afirma, revelando que pagou R$ 600, dividido em 10 vezes, para obtenção do documento dentro do processo da Reurb-S. A casa dele “não tinha documento” porque o loteamento do Bairro São José foi implantado em uma antiga fazenda, sem obedecer critérios legais.
“Foi uma bênção de Deus”, afirma o lavrador Juscelino Antunes Cardoso, de 65 anos, outro morador do mesmo bairro em Mirabela, que conseguiu a escritura do imóvel graças as facilidades da Reurb-S. “Comprei o lote há 20 anos, com o contrato de compra e venda. Depois fui construindo aos poucos”, diz. Ele conta que pagou R$ 500 pelas despesas do cartório e taxas da prefeitura. O valor pesou pouco no bolso dele, pois também foi dividido em 10 parcelas.
Doação para pagar promessa
A região onde foi fundado o núcleo urbano de Mirabela foi doada a São Sebastião, em 1899, por quatro fazendeiros devotos do santo. A doação foi registrada no cartório de Brasília de Minas, “nominal” a São Sebastião”, explica o professor de história Leonardo Almeida Santos, que pesquisou a origem da “terra do santo. Ele é descendente (tetraneto) de um dos doadores, João Antonio Alves de Almeida – os outros são José Antonio Mendes, Plácido da Silva Maia e Pedro Ferreira de Aquino.
Segundo o pesquisador, no documento registrado no cartório consta: “Por assim terem concordado, transferem ao doador Marthy São Sebastião, todo direito, ação e posse do referido terreno, podendo torná-lo judicial e extrajudicial, e os doadores por suas pessoas e bens, obrigam-se a garantir a dádiva e defendê-la quando foram chamados à autoria”.
O professor afirma que, segundo relatos de antigos moradores, os fazendeiros fizeram a doação como pagamento de promessa, mas não se sabe qual a graça recebida. Na ocasião, o lugar era uma fazenda próxima de quatro cursos d’água, que servia como ponto de parada de tropeiros que viajavam entre Montes Claros e Januária, às margens do Rio São Francisco. Com a doação, surgiu o povoado, que 12 anos mais tarde se tornou o distrito de Bela Vista. Em 1943, o distrito ganhou o nome de Mirabela e em 1º de março de 1963 foi emancipado e se tornou município.
Leonardo Santos salienta que nas décadas de 1970, 1980 e 1990, os prefeitos de Mirabela travaram batalhas judiciais com a Igreja para retirar o patrimônio do nome de São Sebastião, mas, sem sucesso. “Na verdade, o objetivo dos prefeitos era regularizar a situação dos ocupantes dos imóveis e poder cobrar impostos, pois não tem como cobrar tributos de um santo”, observa o pesquisador, lembrando que os moradores também sempre tiveram interesse nas escrituras, sobretudo, pela necessidade de terem registro de algum patrimônio para acessoa financiamentos.
A origem da “terra do santo”
A doação de terras a santos, comum no Brasil, tem origem na colonização, que pretendia povoar e cultivar as terras consideradas “sem dono”, segundo o professor e pesquisador José Osmar Pereira Oliva, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). “As Capitanias Hereditárias, constituídas em 1534, tiveram como seu primeiro donatário Martin Afonso de Souza, o qual as dividia também em partes menores, as sesmarias.
Com o avanço do povoamento e a necessidade de fundar cidades, os primeiros colonos, de religião predominantemente católica, se juntavam para doar parte de suas terras a santos da devoção católica. Essas terras, chamadas patrimoniais, por pertencerem à igreja, não podiam ser vendidas, mas era possível conceder o direito de uso aos mais necessitados, ou para atender a interesses políticos’, descreve Oliva.
“É importante destacar que essas doações implicavam a construção de uma capela ou igrejinha em homenagem a um dos santos, que passava a ser o padroeiro da comunidade, sendo assistida por um religioso, responsável também por receber donativos em dinheiro para manutenção da Igreja católica”, ressalta o pesquisador da Unimontes, lembrando que, assim como Mirabela, diversos outros municípios brasileiros que tiveram terras “doadas ao santo”.