Camilo era viciado em jogo, Maria amava a luxúria, Paulo matava inocentes e Cipriano maltratava donzelas indefesas. Para não falar no que fizeram Margarida, Cássio, Sebastião... Segundo a tradição cristã, esses personagens viveram histórias de arrepiar. Mas, curiosamente, todos são cultuados como santos. A eles a Igreja dedica festas, altares e procissões.
Mas como esses homens e mulheres conseguiram superar suas falhas e se tornar veneráveis? Bem, essa resposta você não vai encontrar aqui – até porque as histórias de redenção são bem conhecidas e bastante parecidas entre si. Nos relatos a seguir, queremos mostrar o lado menos famoso desses santos. O lado que não combina com as auréolas douradas.
A parte obscura das biografias dos santos, entretanto, não é vista como algo negativo pela Igreja. Ao reconhecer os erros dos indivíduos que foram canonizados, a instituição humaniza seus santos, criando exemplos de superação a ser seguidos pelo fiéis. Afinal, vacilar também faz parte da vida.
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E da santidade, como explica o teólogo Victor Villavicencio, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais: “Geralmente, o santo sente o chamado da fé, mas rejeita a vocação e passa a viver um conflito”. No fim das contas, segundo a tradição, todos os santos acabaram superando esse conflito e assumindo sua vocação. O que impressiona, nos casos a seguir, é como alguns capricharam na hora de pecar.
A amante e a prostituta
Nem exemplos de pureza, nem de castidade. Existem mulheres que, apesar de terem sido canonizadas, durante boa parte da vida estiveram muito longe dos ideais de comportamento recomendados para as santas. Uma delas é Margarida de Cortona, que nasceu em 1247, na região da Toscana, Itália. Órfã de mãe, foi criada por uma madrasta e um pai cruel. Aos 18 anos, viu no concubinato sua chance de mudar de vida. Naquela época, nobres, reis e até alguns membros do clero mantinham uma ou várias amantes.
Muitas viviam no luxo e possuíam grande influência sobre eles, mesmo em questões políticas. Margarida tornou-se uma delas. Foi concubina de um nobre italiano, com quem conviveu durante nove anos e com quem teve um filho. Conta-se que, nesse período, vivia cercada de mimo e demonstrava um grande desprezo pelos pobres.
Já Maria Egípcia, também conhecida como Egipcíaca, viveu no século 4, longe do luxo e da corte. Aos 12 anos, abandonou a família e, sozinha, foi viver num dos principais centros comerciais da Antiguidade: a cidade de Alexandria, no Egito. Frequentando o porto local, que atraía comerciantes de todo o mundo, tornou-se prostituta. O surpreendente é que ela não vendia o corpo pensando em enriquecer.
Mesmo quando os clientes queriam lhe pagar, recusava o dinheiro. “Eu agia dessa maneira porque queria ter quantos homens fosse possível, fazendo de graça o que me dava prazer”, teria confessado a São Zózimo, um abade que viveu naqueles tempos. Para se sustentar, Maria Egípcia contou que mendigava e trabalhava na fiação de linho. Viveu dessa maneira durante 17 anos, até que decidiu partir para a Palestina.
O relato sobre como a prostituta conseguiu viajar é especialmente impressionante para alguém que, depois, virou santa. No porto de Alexandria, ela teria encontrado vários homens que, apressados, se preparavam para ir a Jerusalém participar da Festa de Exaltação da Santa Cruz.
Ela pediu para acompanhá-los, mas era preciso pagar pela viagem e pela alimentação. Como não tinha um tostão, Maria Egípcia propôs: “Eu tenho um corpo – podem tomá-lo como pagamento pela jornada”. Assim ela conseguiu sua passagem para a Terra Santa.
O jogador
Ele tinha tudo para construir uma carreira de sucesso em meio a guerras, trincheiras e pelotões. Mas preferiu as cartas, trapaças e apostas. Foi em nome deles que Camilo, mais tarde conhecido como São Camilo de Lellis, mentiu, mendigou e desperdiçou parte de sua vida.
Ele nasceu em 1550, na cidade de Bucchianico, Itália. Ficou órfão de mãe muito cedo e praticamente foi educado por estranhos, já que o pai era militar e vivia viajando. Durante a juventude, andou em más companhias, fez todo tipo de travessuras e logo encontrou a paixão pela qual faria muitas loucuras: o jogo.
Aos 17 anos, Camilo parecia ter se ajuizado. Alistou-se no exército e representou seu país em campanhas militares. Mas a atração pelas apostas era incontrolável, e toda sua vida passou a girar em torno da jogatina.
O soldo que recebia como soldado era todo gasto em jogo. Quando suas reservas acabavam, voltava a lutar em novos conflitos. E, ao regressar, começava tudo novamente – mais apostas, mais aventuras, mais dificuldades financeiras. Foi assim durante vários anos. Até que ele acabou na miséria.
Sem ter mais o que dar como garantia no jogo, Camilo empenhou sua capa de militar. Perdeu a aposta, a dignidade e se viu obrigado a entregar a roupa em praça pública. Virou mendigo e tornou-se alvo de chacota. Para completar, ainda sofria com uma chaga incurável no pé, que lhe causava imensas dores.
Torturado por elas, certo dia decidiu mudar de comportamento. Foi, então, pedir abrigo no hospital São Tiago, em Roma, oferecendo-se para auxiliar os enfermeiros em troca de tratamento médico. A diretoria do hospital compadeceu-se dele e aceitou o acordo.
O novo ajudante foi uma decepção – não agradou nem aos doentes, nem aos médicos. “O rapaz não tinha juízo. Era um cabeça quente, brigava com os enfermos por qualquer ninharia, discutia com os enfermeiros e perdia tempo no jogo”, conta o monsenhor Ascânio Brandão no livro São Camilo. Em 1569, o homem que se tornaria o santo protetor dos enfermos foi dispensado por irresponsabilidade e inaptidão para o trabalho de enfermeiro.
Caçadores de cristãos
Fotos: Reprodução
Nos primeiros séculos de nossa era, um trabalho comum às tropas romanas era perseguir seguidores do cristianismo. Sob as ordens de imperadores, eles torturaram e martirizaram vários cristãos. Alguns soldados eram especialmente bons nessas tarefas – e, mesmo assim, se tornaram santos. O primeiro deles teria feito suas atrocidades antes que se pudesse falar de cristianismo, pois o próprio Cristo ainda estava vivo.
Segundo a tradição cristã, o militar romano Cássio foi designado para acompanhar a execução de Jesus e outros condenados. No fim do dia, cansados de esperar que os crucificados morressem, seus colegas decidiram acelerar o processo, quebrando as pernas e braços dos condenados. Cássio assistiu a tudo aquilo sem nada fazer. Quando coube a ele se certificar de que Jesus, de fato, havia morrido, ele não vacilou: perfurou com a lança o abdômen da vítima. Hoje muita gente lembra de São Longuinho – o santo dos três pulinhos –, mas nem todo mundo sabe que ele é o cruel Cássio depois de canonizado.
No século 3, Sebastião (o atual padroeiro dos presidiários) teria feito carreira no exército de Roma, chegando ao posto de capitão da Guarda Pretoriana. O cargo exigia que ele acompanhasse as prisões de cristãos e os horrores que ocorriam nos cárceres do Império Romano. Para completar, ele ainda teria sido incumbido de zelar pela segurança pessoal de Diocleciano – que governou entre 284 e 305 e foi um dos imperadores mais implacáveis na perseguição aos cristãos.
Naquela mesma época, Jorge da Capadócia (região que hoje faz parte da Turquia) teria partido para a Palestina e jurado fidelidade a Roma, servindo também a Diocleciano. Diferentemente de Sebastião, o militar – hoje cultuado como santo guerreiro –, teria logo se revoltado com as atrocidades cometidas contra os seguidores da religião de Jesus.
Não há dúvida, entretanto, de que o mais lembrado perseguidor de cristãos seja Saulo de Tarso, hoje conhecido como São Paulo. Filho de pais judeus e, possivelmente, adepto da seita judaica dos fariseus, ele teria sido designado pelo sumo sacerdote de Jerusalém para capturar os seguidores de Jesus, que havia acabado de morrer. Segundo a Bíblia, Saulo testemunhou a morte de Santo Estêvão, lembrado como o primeiro mártir do cristianismo, e perseguia cristãos no caminho para a cidade de Damasco, na atual Síria – nessa mesma estrada ele teria se arrependido e se convertido, ainda no século 1.
Os cultuados da vez
A cada época, um diferente tipo de santo se torna alvo de veneração. Os primeiros cristãos, por exemplo, cultuavam os mártires – que, nos períodos de perseguição, haviam morrido por defender sua fé. Quando, no século 4, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano, vieram os santos eremitas – abandonando os bens materiais para viver em desertos e montanhas, eles protestavam contra os novos rumos da Igreja. Depois surgiram as santas virgens e muitos outros.
“Cada um a seu tempo, eles serviram como modelo de comportamento diante de determinados desafios históricos”, explica o frei Vanildo Zugno, teólogo da Sociedade de Teologia e Espiritualidade Franciscana, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Até hoje, muitas canonizações seguem essa lógica. Na década de 50, quando a liberdade sexual começava a ser defendida, foi canonizada Maria Goretti, que, sob a ameaça de estupro, preferiu morrer a punhaladas a perder a virgindade.
A devoção dos fiéis costuma ressuscitar santos que pareciam superados. Nos anos 1960 e 70, durante as ditaduras na América Latina, o culto aos mártires ganhou novo impulso: os perseguidos políticos se identificavam com santos como Pedro e Sebastião, que haviam sido combatidos por defender um novo modelo de vida.
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