Brasil : Marco Rondon, uma “cidade-fantasma” esquecida em Rondônia
Enviado por alexandre em 07/06/2023 01:13:05

Hoje, a vila tem apenas dez casas e tem fama de ser mal-assombrada


Quem passa pela BR-364, entre Vilhena e Pimenta Bueno, encontra Marco Rondon, que tem cara de cidade-fantasma. A cerca de 60 km de Pimenta Bueno (sul de Rondônia), a vila conta apenas dez casas habitadas. É tudo o que sobrou dos áureos tempos, em que o movimento era intenso, com direito a ter hotel, bares, farmácia, escola.

Uma pousada abandonada do lado oposto ao da vila e os escombros cheios de vestígios mostram que, ali, um dia houve movimentação. Há até um cofre jogado no meio do mato. A vida era intensa, com direito a muitas festas, pois há centenas de garrafas no caminho que leva ao Rio Marco Rondon, coberto por uma ponte de concreto com vão de 30 metros.

Negativo de filme fotográfico - Foto: Júlio Olivar
Ali, vivia um suíço que administrava a pousada e adorava brindar; "toda tarde ele tomava cerveja, gostava de champanhe e de vinhos. Estas garrafas eram dele", conta dona Arenil Oliveira, 52 anos, que mora na vila desde que nasceu.

Hoje abandonada, a Pousada São Carlos era o ponto de referência do vilarejo. O menino Zael, de cinco anos, mora perto e adora brincar no amplo terreno, onde há muitas árvores. Dali, observa a movimentação de carros que passam pela estrada, mas ninguém para.

Sorridente e ouvindo histórias da mãe, Nilva, Zael fica encantado mostrando as árvores e escreve seu nome com giz de cera na parede da recepção da pousada, um cômodo com vidraças quebradas. 

A guarita e a pousada, ao fundo tudo abandonado - Foto: Júlio Olivar
A sede da pousada é bem simples, com piso de vermelhão e quartos sem banheiro. Andando pelos corredores, a gente tem impressão de algo fantasmagórico, igual um cenário de filme. "Aqui tem fama de ser mal-assombrado", explica Nilza, rindo.

O povoado de Marco Rondon tem este nome porque, no início do século XX, a Comissão Rondon passou com a linha telegráfica Cuiabá-Santo Antônio pela região. A rodovia seguiu, aproximadamente, o traçado dos picadões abertos pelos militares que, além do telégrafo, pesquisaram e mapearam tudo, dando nomes a acidentes geográficos e catalogando as línguas indígenas.

Marco Rondon já era citado desde antes, mas se resumia apenas ao rio e ao marco mesmo. Só a partir de 1960, surgiu como vila, quando foi aberta a rodovia, que trouxe um imenso fluxo migratório. Logo, houve apostas de que ali também se tornaria cidade, como aconteceu com outras localidades ermas da Amazônia. 

A pousada vista de dentro - Foto: Júlio Olivar
Na época, Rondônia nem estado era – o que só aconteceu a partir de 1982. O antigo território federal tinha, em 1960, apenas 50 mil habitantes e se resumia a dois municípios: Porto Velho e Guajará-Mirim. Foi então surgindo muitos "patrimônios" – como chamavam as vilas insipientes.  Marco Rondon era uma delas.

Os antigos patrimônios hoje são as outras 50 cidades, além dos distritos, que compõem Rondônia e que progrediram a partir da rodovia Brasília-Acre — a BR-29 que foi rebatizada como 364 em 1967.

Marco Rondon poderia ser mais uma das cidades. Mas, como diz sua população, "o lugar não foi pra frente".  A povoação já surgiu com sérios problemas. Em consequência da rodovia construída do dia para a noite – foi iniciada em março e já estava inaugurada em julho de 1960 – houve embates entre colonizadores e indígenas cintas-largas, que ficaram deslocados diante do progresso. 

As casas do vilarejo criado na década de 1960  - Foto: Júlio Olivar
Alguns deles passaram a viver nas imediações do vilarejo, fugindo de outra área, na divisa entre Rondônia e Mato Grosso. Em 1963, muitos desses ancestrais foram mortos no Massacre do Paralelo 11, no Vale do Juruena. Açúcar com arsênico, dinamites jogadas de avião e tiros de metralhadora – ações atribuídas a seringalistas – teriam matado milhares de indígenas, segundo o Relatório Figueiredo, repercutido internacionalmente.  

Os que sobreviveram do Paralelo 11 se espalharam. Colonizadores tinham suas casas invadidas e respondiam a tiros para espantar os indígenas. Em 1965, cerca de 70 deles ocuparam a rodovia e passaram a atacar caminhões e carros, inclusive saqueando cargas. No garimpo de cassiterita no vale do Roosevelt, o aviso era: passem com cuidado e depressa pelo Marco Rondon.

Foi preciso uma força-tarefa da Funai, criada em 1967 em substituição ao SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O órgão federal foi extinto porque estava mergulhado em corrupção e inoperância, segundo ainda o Relatório Figueiredo, um documento de mais de 6 mil páginas elaborado pelo procurador federal Jader Figueiredo. 

A placa caída e com o nome errado - Foto: Júlio Olivar
Por desconfiança dos "civilizados", os cintas-largas se negavam a travar contatos porque tinham sido vítimas de atrocidades e se sentiam desprotegidos pelo sistema.  Somente em 1971, o sertanista Apoena Meirelles conseguiu, pela primeira vez, ir a uma aldeia desse povo e, assim, foi pactuada a pacificação, do ponto de vista do colonizador.

Quando Apoena chegou ao aldeamento e foi recebido pelos cintas-largas, havia sido trucidado, às margens do Rio Roosevelt, o jornalista Possidônio Bastos – ainda não se sabe quem foram seus algozes, ora apresentados como indígenas, ora como mineradores e loteadores. O jornalista era aliado dos indígenas e denunciava a violência, destacando o esquema imobiliário que surgiu nas terras dos povos da floresta, sem haver um projeto que pudesse assegurar a sobrevivência deles. A ordem do governo era "integrá-los à civilização".

Garimpeiros de cassiterita, seringueiros e pecuaristas chegavam às dezenas de outros pontos do país e iam se instalando dos dois lados da estrada, com anuência do governos federal e territorial que estimulavam a ocupação. Havia o slogan "Integrar para não entregar" patrocinado pelo Palácio do Planalto com objetivo de povoar a Amazônia, a qualquer preço. 

O Rio Marco Rondon - Foto: Júlio Olivar
Foi assim que o solo da área que mescla dois biomas, Cerrado e Amazônia, foi explorado. Além da mineração, da lavoura e da pecuária, havia um rescaldo da extração seringalista – ciclo econômico que durou décadas e que acabou em definitivo, na região, no começo dos anos 1970.

Em 1973 foi criada a Reserva Roosevelt, com 2,7 milhões de hectares, onde vivem os cintas-largas, em uma terra rica em jazidas de diamantes. Permanecem os contrabandos e os conflitos que, em 2003, levaram 29 garimpeiros a serem assassinados pelos cintas-largas, no município de Espigão do Oeste.

O tempo passou, hoje a paz reina no Marco Rondon, misturando os sons da mata e do rio, com os das carretas velozes que passam pela rodovia, a todo instante levando, principalmente, soja para o porto de Porto Velho. Além das dez famílias que vivem na vila, em casas sem cercas, há muitas fazendas e sítios que atuam no ramo pecuário, que é o forte da economia local. 

Nilza e seu filho Zael moram nas vizinhanças - Foto: Júlio Olivar

O Estado esqueceu o Marco Rondon. Uma placa de trânsito está caída e jogada à beira do rio, a outra está escondida pelo matagal na encosta da rodovia, onde o nome do bairro está grafado erradamente como "Marcon Rondon". Desdém é a tradução. 


Mapeamento mostra que somente 1 em cada 100 brasileiros consome alimentos biodiversos

Fotomontagem: Jornal da USP – Fotos: Freepik e Wikimedia Commons

O Brasil possui uma das mais notáveis biodiversidades do planeta, que se estende para a oferta de alimentos. São milhares de espécies nativas que garantem à culinária brasileira diversidade com sabores únicos do País. Do tucumã, fruta típica da região amazônica, ao pequi, típico do Cerrado, os chamados alimentos biodiversos incluem plantas alimentícias não convencionais (Panc), carnes de caça e cogumelos comestíveis. Costumeiramente regionais e representativos da biodiversidade brasileira, alguns deles têm potencial para contribuir com a segurança alimentar da população e para uma dieta mais saudável.

Um estudo realizado por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em parceria com as universidades federais do Pará (UFPA), do Rio Grande do Norte (UFRN), de Campina Grande (UFCG), da Paraíba (UFPB) e de Pernambuco (UFPE), investigou o consumo desses alimentos pelos brasileiros e constatou que apenas 1,3% da população tem acesso a uma dieta biodiversa.

PANC: plantas alimentícias não convencionais – Fotomontagem: Jornal da USP – Fotos: Freepik e Wikimedia Commons

Foram utilizados dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, realizada pelo IBGE, acerca do recordatório alimentar das últimas 24 horas de mais de 46 mil pessoas, de todos os Estados. "Nós utilizamos modelos matemáticos para identificar as quantidades e as frequências de alimentos consumidos, além de encontrar quais eram as variáveis socioeconômicas associadas a esse consumo", explica Aline de Carvalho, professora da FSP. Para uma melhor compreensão de tais informações, os diferentes nomes regionais para o mesmo alimento foram considerados.

Com isso, os pesquisadores elaboraram uma lista de alimentos biodiversos separada entre as Panc, carnes e cogumelos, unificando dados como estados de aparição, vezes em que foram mencionados e nome científico. O alimento que mais apareceu foi o pequi, fruto popular da culinária do Cerrado, que foi citado 135 vezes, principalmente por goianos. Algumas frutas como o jenipapo, o babaçu e o butiá foram reportadas apenas uma vez, por moradores da Bahia, Maranhão e Paraná, respectivamente.

Além disso, foram analisados os perfis socioeconômicos dos consumidores de cada subdivisão.

"Foi possível observar que as plantas são mais consumidas por mulheres, principalmente não brancas, das regiões Norte e Nordeste do País, e com uma menor renda per capita",

diz Aline de Carvalho.

Os cogumelos, por sua vez, foram mais encontrados na mesa de mulheres brancas, das regiões Sul e Sudeste, com uma maior renda.

Com relação às carnes de caça, como paca, jacaré e cotia, homens negros e indígenas em situação de insegurança alimentar, que também residem na zona rural no Norte e no Nordeste, são os maiores consumidores.

Vale ressaltar que, mesmo que ocorra na prática, no Brasil a caça de animais silvestres é proibida, com exceção para a caça de subsistência (necessidade de alimentar a si mesmo ou à própria família) e para alguns casos autorizados pelos órgãos competentes.

Alimentação saudável e diversa 

A pesquisadora destaca a ausência de estudos sobre alimentação biodiversa, e coloca esses alimentos como negligenciados pela maioria da população. "Eles são muito pouco consumidos, o que pode ter vários motivos: ou aquele alimento já não é mais considerado cultural naquele local, ou porque ele nem mesmo está presente no supermercado", explica Aline de Carvalho. O enfraquecimento da relação humano-natureza e o afastamento dos centros urbanos com a diversidade natural podem ser citados como fatores que contribuem para a falta desses alimentos na nossa mesa.

A notável falta de biodiversidade na dieta brasileira é uma preocupação para a saúde da população, que cada vez mais consome alimentos ultraprocessados.

"É preciso promover a segurança alimentar, uma alimentação que seja de qualidade e em quantidade suficiente para toda a população. Esse trabalho vai desde nós mostrarmos de que maneira esses alimentos [biodiversos] poderiam ser consumidos, mas complementar com diversos outros projetos que fomentem uma alimentação natural".

Aline de Carvalho
Projeto Sustentarea. Foto: Reprodução/Sustentarea-USP Sustentabilidade

O projeto Sustentarea, um Núcleo de Extensão Universitária da USP coordenado pela pesquisadora, busca popularizar esses alimentos por meio de hortas urbanas e livros culinários – medidas que procuram incentivar a busca e a implementação desses elementos na dieta da população. Oficinas são promovidas todos os meses no Centro de Práticas Esportivas da USP (Cepeusp). Elas contam com demonstração de receitas, roda de debates e introduções teóricas sobre diferentes temas, de maneira dinâmica e prática.

Iniciativas como as realizadas pelo Sustentarea são peças fundamentais não só na popularização desses frutos, vegetais e plantas, mas também para a conscientização da importância de uma alimentação diversificada e in natura – livre de agrotóxicos e conservantes. "Nós estamos perdendo nossa relação com a comida ao longo do tempo. É muito importante nos reconectarmos para assim termos uma alimentação mais saudável, com menos impactos ao meio ambiente", afirma a pesquisadora.

Agora, o objetivo é compreender a qualidade nutricional desses alimentos e suas implicações no campo econômico e social. A pesquisadora espera que o mapeamento realizado pelo estudos sirva como incentivo para novas investigações e reflexões sobre alimentação biodiversa.

Os resultados do estudo foram publicados no artigo 'Biodiversity is overlooked in the diets of different social groups in Brazil', disponível na revista Scientific Reports.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da USP, com texto de Camilla Almeida e arte de Gabriela Varão.

 

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