Swiss Re ofereceu cobertura contra perdas em plantios de fazendas embargadas por desmatamento. Também firmou contratos em propriedades sobrepostas a terras indígenas e com empregadores flagrados usando trabalho escravo
Embargo em fazenda da família Kumasaka que encobre quase toda a área produtiva da propriedade (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Da porta de sua casa, uma construção improvisada com tábuas de madeira cobertas por uma lona plástica, Simão Kaiowa enxerga a cerca e a porteira onde caiu morto seu parente Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, em julho de 2016, depois de ser alvejado com um tiro no abdômen e outro no tórax numa disputa de terra com fazendeiros da região.
Uns poucos metros adiante, do outro lado da cerca, se avista a lavoura de Virgílio Mettifogo, o homem acusado de apertar o gatilho, segundo testemunhas, e um dos cinco réus que respondem judicialmente pelo ataque. O episódio, que ficou conhecido como Massacre de Caarapó, terminou com outros seis indígenas hospitalizados, entre os quais uma criança.
O ataque ocorreu um mês após a publicação, pelo governo federal, de um relatório antropológico que reconhecia o direito dos indígenas Guarani e Kaiowá sobre uma área de 56 mil hectares no Mato Grosso do Sul. O relatório apontou ainda a existência de dezenas de produtores rurais – Mettifogo entre eles – dentro da área em disputa, batizada de Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I. Até hoje, através de ações judiciais que contestam a identificação, fazendeiros têm conseguido evitar sua remoção do local.
Mesmo com esse histórico, Mettifogo é um dos clientes da Swiss Re, uma das principais seguradoras do mundo e também uma das líderes do mercado de seguros agrícolas no Brasil. Entre 2020 e 2021, quando ele já era réu por homicídio – o caso ainda aguarda julgamento –, a empresa assinou três apólices para proteger suas plantações de soja e milho na região contra eventos climáticos como secas ou geadas.
Além de Mettifogo, outros quatro fazendeiros tiveram lavouras seguradas pela Swiss Re em coordenadas geográficas que estão dentro da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I. São apólices contratadas com o auxílio de subvenção pública, em que o governo brasileiro paga parte do prêmio, conferindo um desconto no valor final do serviço ao produtor. Por isso, as informações de contrato são públicas, incluindo as coordenadas geográficas das propriedades seguradas.
“Nossa terra indígena está na mão dos fazendeiros, e eles ainda querem receber seguro agrícola?”, revolta-se Simão.
Segundo um estudo recente publicado pelo portal De Olho nos Ruralistas, pelo menos 225 fazendas estão registradas em nome de proprietários particulares dentro de Dourados Amambaipeguá I, a maioria produzindo soja, milho e cana – o que faz deste o território tradicional mais invadido do país.
O processo de demarcação da Terra Indígena até hoje não foi concluído. Por isso, segundo o Procurador da República Marco Antônio Delfino de Almeida, do Ministério Público Federal em Dourados (MS), não há impedimento legal para a concessão de seguro a fazendeiros dentro da área.
“Mas assegurar plantios em áreas conflituosas não é coerente com padrões legislativos e corporativos internacionais, especialmente em empresas instituições que se comprometem a cumprir a Convenção 169 e a seguir princípios de Environmental, Social and Corporate Governance (ESG)”, observa.
Em sua política de sustentabilidade, a Swiss Re garante “não apoiar negócios que impactem negativamente as comunidades locais e os direitos de grupos específicos de pessoas, como o direito de consentimento livre e esclarecido para os povos indígenas”. Mas, em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa não comentou o caso. Disse apenas que “permanece totalmente comprometida com suas ambições e metas na área de sustentabilidade”. A íntegra pode ser lida aqui.
Já o advogado que representa Mettifogo disse, através de uma mensagem no WhatsApp, que seu cliente “não tem nada a dizer”.
Crise climática
Aos seus investidores, a Swiss Re ressalta o compromisso ambiental como um de seus atrativos. Segundo seu relatório de sustentabilidade de 2022, uma das ambições para o período até 2025 é avançar na transição para um quadro de neutralidade de emissões de gases de efeito estufa – meta que a empresa planeja atingir em 2050.
Apesar disso, está segurando negócios que estão ligados à principal contribuição brasileira para o aquecimento global: o desmatamento – em 2021, as emissões brutas por desmatamento no Brasil superaram o total de emissões de um país como o Japão, segundo cálculos do Observatório do Clima. Ao todo, a Repórter Brasil localizou 19 contratos feitos com três propriedades embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal.
Dados do governo federal mostram que na primeira década de funcionamento do programa de subsídios públicos ao seguro, 30% dos sinistros ocorridos em apólices subvencionadas foram causados pela seca e 8% por chuvas excessivas – dois fatores que podem ser acentuados pelas mudanças climáticas.
Fazendeiros denunciados pelo Massacre de Caarapó em 2016 mantêm lavouras dentro da TI Dourados Amambaipeguá I e encurralam indígenas (Foto Ruy Sposati/Repórter Brasil)
“O agronegócio ajuda a provocar mudanças climáticas quando produz sobre áreas desmatadas. Mas, à medida que fica mais arriscado plantar em alguns lugares, há maior demanda por seguro rural – que, no Brasil, é subsidiado pelo governo. Ou seja, os fazendeiros lucram com o desmatamento e depois socializam o prejuízo, todo mundo paga para eles”, critica Paulo Barreto, pesquisador associado do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Uma dessas fazendas é a Manto Verde, da família Kumasaka, que está sobreposta a duas unidades de conservação federais – a Área de Proteção Ambiental (APA) Serra Da Tabatinga e o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba. Ela está localizada em uma das regiões onde o desmatamento mais avança no Brasil, o Matopiba, nome dado à divisa entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Entre 2016 e 2021, a Swiss Re assinou 17 contratos com os Kumasaka para garantir eventuais perdas em suas lavouras de soja na Manto Verde. Neste mesmo período, a Fazenda Manto Verde foi alvo de diversas fiscalizações ambientais que renderam R$ 15 milhões em multas, e levaram ao embargo de 2,4 mil hectares da propriedade onde foram identificados desmates e plantios sem autorização – quase a totalidade da área disponível para plantio na fazenda.
O advogado dos Kumasaka, Edson Vieira Araujo, disse que os embargos “foram fruto de uma briga institucional entre os órgãos ambientais” e que a fazenda estaria em processo de regularização (leia a íntegra das respostas aqui). Em maio, uma decisão judicial suspendeu os embargos. Mas eles estavam válidos quando os contratos com a Swiss Re foram assinados.
A legislação brasileira proíbe o cultivo de lavouras em áreas sob embargo, de modo a garantir a regeneração da vegetação nativa. A Repórter Brasil perguntou à Swiss Re se o perímetro segurado pela empresa dentro da Fazenda Manto Verde incluía áreas embargadas, mas a empresa não respondeu.
Amazônia e Cerrado em risco
O caso da Manto Verde não é isolado. Em 2020, a Swiss Re fechou negócio com o agricultor Edvair José Manzan para segurar uma plantação de 547 hectares de soja na Fazenda São Francisco, em Peixe, no estado do Tocantins. Desde novembro de 2018, um embargo do Ibama já recaia sobre a propriedade, onde o órgão identificou o desmate ilegal de 92 hectares de Cerrado. O embargo permanecia válido quando o contrato foi assinado.
Dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) revelam que o desmatamento no Cerrado aumentou em 21% nos primeiros seis meses do ano – e três quartos dessa destruição ocorreram no Matopiba, onde há um boom de lavouras.
Manzan admite o desmate: “na época, meu pai abriu um pouco mais do que é permitido e configurou desmatamento”, disse à reportagem, mas assegurou que mantém preservada uma área de mata equivalente a 35% da fazenda. “Somente a área considerada pela autuação do Ibama está embargada, o restante da fazenda está totalmente dentro da lei. Portanto, a empresa segurou uma área de plantio legalizada”, completou. A íntegra pode ser lida aqui.
Também em 2020, o pecuarista Jefferson Luiz Bazanella assinou um contrato com a Swiss Re para segurar 27 cabeças de gado na Fazenda Queda Livre, em Novo Progresso, no Pará – mas parte dessa fazenda havia sido embargada seis anos antes, quando uma fiscalização do Ibama identificou o desmate ilegal de floresta amazônica na fazenda e em uma propriedade vizinha, que pertence a um familiar de Bazanella. Assim como nos demais casos mencionados nesta reportagem, esse embargo também estava em vigor o momento da assinatura do contrato.
A pecuária é o principal vetor de desmatamento da Amazônia – área verde que representa um terço das florestas tropicais do mundo, razão pela qual sua preservação é considerada central para que o planeta atinja as metas do Acordo de Paris. Bazanella não respondeu às tentativas de contato, mas o espaço permanece aberto para sua manifestação.
Em suas políticas de sustentabilidade voltadas ao Brasil, a Swiss Re afirma apoiar “o reflorestamento da Mata Atlântica”, mas não há no documento publicado em 2023 qualquer menção à Amazônia ou ao Cerrado. A empresa também afirma colocar em prática princípios de “devida diligência” para casos sensíveis do ponto de vista socioambiental.
Mas, em sua manifestação enviada à redação, não comentou esse ponto, nem os casos levantados pela reportagem. A íntegra da nota da empresa pode ser lida aqui.
Rebanho bovino nos municípios da Amazônia Legal cresceu quase dez vezes entre 1974 e 2019 e floresta deu lugar ao pasto (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Seguro e trabalho escravo
Ainda em 2020, a Swiss Re também segurou uma plantação de café do produtor Fuad Felipe em São Tomás de Aquino, Minas Gerais. A assinatura do contrato ocorreu dois meses após uma fiscalização do governo federal constatar que o produtor mantinha 39 trabalhadores rurais em condições análogas à escravidão na colheita do produto em outra de suas propriedades. Entre os resgatados, havia três adolescentes de apenas 14 anos de idade.
A Swiss Re é uma das multinacionais sujeitas ao UK Modern Slavery Act, legislação do Reino Unido que se aplica a qualquer empresa com receita anual no país superior a £36 milhões. Ela determina que tais empresas devem adotar medidas para identificar, prevenir e mitigar a escravidão moderna em suas operações e redes de negócios, além de publicar uma declaração anual para relatar essas ações.
Felipe já era cliente da seguradora desde pelo menos 2017. E, em 2021 e 2022, o cafeicultor voltou a contratar seguros da Swiss Re, desta vez para o cultivo de soja na mesma Fazenda Bom Jardim onde os trabalhadores foram resgatados em 2020.
Fuad Felipe não respondeu às nossas tentativas de contato, mas o espaço permanece aberto para suas manifestações.
Em sua declaração anual relativa ao ano de 2020 – mesmo ano do resgate na fazenda Bom Jardim – a Swiss Re informou que sua “estrutura de risco empresarial sustentável especifica critérios que podem levar a excluir uma empresa de nossas transações de seguros, resseguros ou investimentos”, entre eles violações dos direitos humanos, trabalho forçado e escravidão. Mas a empresa não comentou o caso específico. Disse apenas que “ao avaliar uma possível transação, utiliza informações disponíveis para garantir que ela atenda aos critérios ambientais, sociais e de governança” e que seus processos e análises estão em constante atualização.
Responsabilidade do governo
Segundo uma norma publicada em junho de 2022 pela Superintendência de Seguros Privados – a autarquia federal que gere o mercado de seguros no país – a responsabilidade de verificar se a apólice de seguro está dentro dos parâmetros socioambientais esperados é da seguradora. Mas todos os contratos analisados nesta reportagem foram pagos, em parte, com dinheiro público do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (PSR) do governo federal. Apenas 17 entre as 115 empresas que operam seguros no país podem participar.
Em 2022, o governo federal investiu R$ 1 bilhão no PSR, o que significou 7,4% dos valores negociados em seguros rurais no país. O valor previsto para o PSR no orçamento de 2023 é ligeiramente maior, R$ 1,06 bilhão. O programa existe há 18 anos e, entre 2015 e 2021, o número de apólices subvencionadas saltou de 39,8 mil para 212,9 mil.
O Ministério da Agricultura e Pecuária audita 1% do total de apólices de seguro rural subsidiados para fazer um pente fino nas informações contidas na apólice. Estas propriedades também são fiscalizadas in loco. Mas isso tem sido insuficiente para evitar contratos em áreas ilegais.
“No Brasil, hoje existem ferramentas para evitar essa sobreposição [seguro em área embargada]”, lembra Barreto, do Imazon. Ele aponta o uso de sistemas imagens de satélite e os dados públicos do Cadastro Ambiental Rural, que permitem obter informação integral sobre o perímetro de uma fazenda e das áreas protegidas em seu interior. “Dá para analisar 100% dos contratos, não é preciso fazer uma amostragem”, completa. Neste ano, o Banco Nacional Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), começou a bloquear a concessão de crédito rural após análise remota de conformidade ambiental com base em critérios semelhantes.
Em nota, o Mapa informou que um sistema de monitoramento “está em fase de testes” e que não tinha conhecimento dos casos mencionados pela reportagem. A íntegra pode ser lida aqui. “O sistema vai cruzar a área informada na apólice com seis critérios e vai negar subvenção para áreas embargadas, terras indígenas, unidades de conservação, sítios arqueológicos, territórios remanescentes de comunidades quilombolas e propriedades com registro de trabalho escravo”, ilustra Jônatas Pulquério, diretor do departamento de Gestão de Riscos do Mapa.
Em sua página na internet, a Swiss Re se apresenta como “uma das principais fornecedoras mundiais de resseguros, seguros e outras formas de transferência de riscos” e diz que seu trabalho visa “tornar o mundo mais resiliente”. Presente em 25 países, a receita líquida da empresa nos seis primeiros meses de 2023 foi de 1,4 bilhão de dólares, o equivalente ao resultado do ano inteiro de 2021.
Pesquisa internacional ainda alerta que as ondas de calor serão mais frequentes nos próximos anos e farão com que quase 525 milhões de pessoas sofram de insegurança alimentar
O Brasil está enfrentando nos últimos dias uma nova onda de calor e altas temperaturas com termômetros marcando acima de 40°C e sensações térmicas que ultrapassam os 50°C. Segundo um relatório feito pela revista The Lancet as mortes de idosos, acima dos 65 anos, relacionadas ao calor cresceram mais de 85% nas últimas três décadas.
O estudo foi feito por uma colaboração internacional de mais de 114 cientistas e pesquisadores de 52 instituições do mundo e de agências da Organização das Nações Unidas (ONU) ao redor do mundo. Segundo a pesquisa, o aumento é substancialmente maior do que o crescimento projetado de 38%.
Para chegar ao dado, os cientistas simularam como seriam essas mortes se as temperaturas mantivessem os mesmos níveis — seria, então, um crescimento de 38% em comparação com o período de 1990 a 2020.
Segundo os cientistas, o que teria proporcionado este aumento é o aquecimento global, gerado pelas mudanças climáticas e que são potencializadas por atividades humanas. Ainda segundo o estudo, a população nesta faixa etária e os bebês, são vulneráveis a riscos para a saúde, quando expostos ao calor.
O Ministério da Saúde também criou uma página especial com 22 cuidados e medidas importantes para evitar riscos à saúde e revelou os grupos que são mais propensos a sofrer com o calor excessivo.
“Idosos, crianças, mulheres grávidas, pessoas doentes ou acamadas são vulneráveis e merecem mais atenção. Idosos e crianças, por exemplo, têm muita dificuldade de reconhecer a sede. Por isso, é necessário oferecer água com muito mais frequência a eles”, alerta Agnes Soares, diretora do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e do Trabalhador.
A publicação do The Lancet ainda alerta que as ondas de calor serão mais frequentes nos próximos anos e farão com que quase 525 milhões de pessoas sofram de insegurança alimentar entre 2041 e 2060, agravando o risco global de desnutrição. Com as mudanças climáticas, a população fica exposta a contrair doenças infecciosas e fatais, como a dengue, a malária e outras viroses.
Confira as 22 medidas do Ministério da Saúde:
Evite a exposição direta ao sol, em especial, de 10h às 16h;
Se expor ao sol sem a proteção adequada contra os raios ultravioleta deixa a pele vermelha, sensível e até com bolhas. Use protetor solar;
Use chapéus e óculos escuros (especialmente pessoas de pele clara);
Proteja as crianças com chapéu de abas;
Use roupas leves e que não retêm muito calor;
Diminua os esforços físicos e repouse frequentemente em locais com sombra, frescos e arejados;
Em veículos sem ar-condicionado, deixe as janelas abertas;
Não deixe crianças ou animais em veículos estacionados;
Aumente a ingestão de água ou de sucos de frutas naturais, sem adição de açúcar, mesmo sem ter sede;
Evite bebidas alcoólicas e com elevado teor de açúcar;
Faça refeições leves, pouco condimentadas e mais frequentes;
Recém-nascidos, crianças, idosos e pessoas doentes podem não sentir sede. Ofereça-lhes água;
Se possível, feche cortinas e/ou janelas mais expostas ao calor e facilite a circulação do ar;
Abra as janelas durante a noite;
Utilize menos roupas de cama e vista-se com menos roupas ao dormir, sobretudo, em bebês e pessoas acamadas;
Informe-se periodicamente sobre o estado de saúde das pessoas que vivem só, idosas ou com dependência que vivam perto de si e ajude-as a protegerem-se do calor;
Mantenha ambientes úmidos com umidificadores de ar, toalhas molhadas ou baldes de água;
Mantenha medicamentos abaixo de 25º C na geladeira (ler as instruções de armazenamento na embalagem);
Procure aconselhamento médico se sofrer de uma doença crônica condição médica ou tomar vários medicamentos;
Busque ajuda se sentir tonturas, fraqueza, ansiedade ou tiver sede intensa e dor de cabeça;
Se sentir algum mal-estar, busque um lugar fresco o mais rápido possível e meça a temperatura do seu corpo e beba um pouco de água ou suco de frutas para reidratar;
No período de maior calor, tome banho com água ligeiramente morna. Evite mudanças bruscas de temperatura.
Depois de muitas tentativas frustradas, desde o século 19, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) foi inaugurada em 1912; foi a 15ª ferrovia construída no Brasil. O percurso era de 366 quilômetros ligando Porto Velho – então uma cidade ao sul do estado do Amazonas – a Guajará-Mirim, cidade mato-grossense na fronteira do Brasil com a Bolívia.
Somente em 1943 seria criado o Território Federal do Guaporé, atual estado de Rondônia, com Porto Velho como capital. Até 1966, a EFMM funcionou com passageiros e teve alguma sobrevida para fins turísticos; tornou-se uma iconografia histórica, um símbolo desta região amazônica.
O que muitos não sabem é que se planejava outra ferrovia para o atual estado de Rondônia, chegando à região do Vale Guaporé. Desde a Comissão Rondon (1907/1930), já se falava em perspectiva da instalação de uma ferrovia com saída onde está hoje o município de Cabixi no sentido a Cuiabá e, de lá, para o Sudeste do País. Em 1911, houve estudos elaborados pelo Governo Federal neste sentido. Mas ficou só na intenção.
Cidade de Vilhena, sul de Rondônia. Foto: Júlio Olivar/Acervo pessoal
Já no Governo Juscelino Kubitscheck, na década de 1950, foi idealizada a Ferrovia Transulamericana que ligaria os oceanos Pacífico e Atlântico, cortando todo o território do Guaporé no sentido Vilhena-Porto Velho. O projeto não avançou. No dia em que inaugurou a BR-29 (atual 364), em 1960, JK chegou a fazer mencionar o projeto, mas ele encerraria naquele ano o seu governo; seus substituto, Jânio Quadros, engavetou a ideia e, por pouco, não paralisou até mesmo as obras da 364, o que só não ocorreu por pressão da própria sociedade.
Em 1985, houve empolgação quando do anúncio da Leste-Oeste ligando Vilhena a Pirapora (MG), cobrindo distância de 2 mil e 300 metros, com previsão de custar US$ 5 bilhões de dólares, segundo a Valec, empresa pública vinculada ao Ministério dos Transportes. Não avançou.
Em outras ocasiões, a ferrovia foi novamente anunciada com alarde pelo Governo Federal que promoveu reuniões e audiências públicas em Vilhena. Em 1987, anunciou-se, de novo, a ferrovia agora ligando Vilhena a Vitória (ES), como parte de um estudo da Fundação Pedroso Horta sobre as necessidades globais da Região Centro-Oeste (que termina em Vilhena, divisa entre MT e RO) no abastecimento alimentar do mundo.
O mapa do traçado da FICO. Imagem: Divulgação/Governo Federal
Somente em 17 de setembro de 2008, por meio da Lei 11.772, a ferrovia foi incluída no Plano Nacional de Viação, agora com o nome de Transoceânica. Ultimamente, com o nome de FICO (Ferrovia Integração Centro-Oeste), foi anunciada "outra" ferrovia – ligando Vilhena a Mara Rosa (GO), 1.641 km de extensão, interligando à Norte-Sul, ao custo de R$ 6,8 bilhões.
A obra teve início em 2021 e, em 2023, o primeiro trecho (Mara Rosa a Água Boa (MT), com 383 km) foi aterrado. Não há uma previsão de quando a ferrovia atingirá Vilhena. Após isso acontecer, uma extensão de aproximadamente 700 quilômetros entre Vilhena e Porto Velho está em estudo, possibilitando a integração da FICO com a Hidrovia do Madeira, um dos principais corredores de exportação da soja, da carne, do milho e do algodão produzido em Rondônia e no Mato Grosso.
De acordo com o projeto da FICO, o traçado licenciado é 1,4 km distante das unidades de conservação mais próximas à ferrovia e não interceptará nenhum assentamento. Também não abarca nenhuma terra indígena ou comunidade remanescente quilombola dentro ou fora da Amazônia legal.
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Estudo conclui que a adoção de ILPF, em diferentes combinações, tem um balanço positivo nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) no bioma. O balanço líquido de carbono equivalente, no fim de quatro anos, foi negativo.
Com informações da Embrapa
A atividade peculiar com uso de sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), em diferentes símbolos, tem um balanço positivo nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) no bioma Amazônia. Essa é a conclusão de um estudo realizado no maior experimento da ILPF do País, localizada na Embrapa Agrossilvipastoril, no Mato Grosso.
Uma pesquisa mensurou e comparou dados de pastagem solteira de Brachiaria brizantha cv. Marandú; integração lavoura-pecuária (ILP), com dois anos de cultivo de soja na safra e milho com braquiária na segunda safra, seguido por dois anos de pecuária; integração pecuária-floresta (IPF) com renques triplos de eucalipto a cada 30 metros; e ILPF, com a mesma rotação da ILP, porém com linhas simples de eucalipto a cada 37 metros.
Os resultados demonstraram que o balanço líquido de carbono equivalente no fim de quatro anos foi negativo em todos os sistemas, ou seja, houve um sequestro maior do que as emissões.
Foto: Gabriel Faria
O maior saldo foi o do sistema IPF, com 51,3 toneladas de carbono equivalente por hectare (ton/CO2eq/ha), seguido pelo ILPF, com 39,5.
A ILP teve saldo positivo de 18,8 ton/CO2eq/ha e até mesmo a peculiar em sistema convencional sequestrou mais carbono do que emitido, com 26,8 ton/CO2eq/ha ao longo de quatro anos.
A pesquisa usou como referência de comparação uma área de pasta degradada, de forma a simular o que aconteceria se ela fosse recuperada com um desses sistemas produtivos.
"Como estamos tentando proporcionar sistemas mais sustentáveis para o Brasil, usamos como referência de comparação uma pastagem degradada. Sistemas sustentáveis são aqueles que produzem bem, com neutralização de emissões de gases. É isso que chamamos de intensificação, é você sair de um local com baixa produção animal e de forragem para uma maior produtividade, com aumento da qualidade do solo",
afirma a doutoranda no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena/USP) e primeira autora do trabalho, Alyce Monteiro .
Bruno Pedreira - atualmente na Universidade do Tennessee, mas na época do estudo pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril e coorientador de Alyce Monteiro - destaca o fato de que mesmo a pecuária solteira, quando bem manejada, mostrou-se eficiente no balanço de carbono equivalente. Para ele, isso indica como é possível melhorar a sustentabilidade da atividade no Brasil.
"Fazer a pecuária de uma maneira bem feita representa para nós a possibilidade de vender uma carne com balanço positivo de carbono. São sistemas que elevam a perspectiva ambiental da peculiaridade para o futuro. O Brasil é o País que tem potencial para fazer isso como nenhum outro",
afirma Pedreira.
Imagem: Divulgação/Embrapa
Pegada de carbono
Além de medir o carbono equivalente emitido por hectare em cada sistema, o estudo estudou unidades de medida de pegada de carbono, como CO2eq por quilograma de carcaça (carne) e por quilograma de proteína de consumo humano (percentual de proteínas presentes nos grãos e na carne). A madeira produzida não foi contabilizada nos cálculos de pegada de carbono, uma vez que o corte final ainda não foi feito.
O sistema ILP foi o que teve maior emissão de gases de efeito estufa por quilograma (kg) de produção produzida. O número foi 7% maior do que a ILPF, 32% maior do que a IPF e 42% maior do que a pecuária solteira. Quando expresso o balanço líquido de emissões pelo volume de carcaça, todos os sistemas tiveram números negativos, ou seja, sequestraram carbono para cada quilograma de carne produzido. Os sistemas com árvores tiveram um balanço negativo maior do que o ILP e a pecuária.
O sistema silvipastoril (IPF) foi o que teve o maior balanço negativo quando expresso em kg CO2eq/kg de proteína de consumo humano, ou seja, foi o que mais sequestrou carbono por quilograma de proteína de alimentação humana. Foram 69,32 kg CO2eq estocados a cada kg de proteína digerida pelo homem por meio da carne e dos grãos produzidos. Esse resultado foi duas vezes maior do que a pecuária, 5,2 vezes maior do que a ILPF e 11,4 vezes maior do que a ILP.
Imagem: Divulgação/Embrapa
Entretanto, os sistemas ILP e ILPF foram os que tiveram maior produção de proteína de consumo humano por hectare, com 3.010 kg/ha, contra 755 kg/ha da pecuária e da IPF.
O estudo avaliou ainda o percentual da contribuição de cada gás de efeito estufa nos sistemas. O metano é sempre o gás de maior impacto, chegando a 85% das emissões na pecuária isolada e na IPF, 68,6% na ILPF e 66,1 na ILP.
Imagem: Divulgação/Embrapa
Passo a passo da pesquisa
A coleta de dados da pesquisa ocorreu no experimento de ILPF com foco na produção de carne, grãos e madeira da Embrapa Agrossilvipastoril entre 2015 e 2018, porém também foram usadas referências como informações coletadas nesse mesmo experimento ao longo de mais de dez anos.
Para se chegar aos números foi necessário mensurar dados de produtividade dos animais e do trabalho, sobre o crescimento das árvores, insumos utilizados, acúmulo de carbono no solo em todos os sistemas, estimativa das emissões de óxido nitroso, emissão de metano entérico pelos animais e consumo de combustível e energia para a produção.
Para a mensuração das emissões de metano entérico, por exemplo, foi utilizado o equipamento GreenFeed, que mede o metano expelido pelo animal enquanto este se alimenta em um cocho.
Dados da literatura foram usados para fazer os devidos específicos e extrapolações.
"Trabalhamos com três anos de dados da Embrapa Agrossilvipastoril. Foi muito difícil, pois é um banco de dados muito grande. Tio que relaciona vários fatores de envio. Isso tudo exige muito cuidado quando se trabalha com modelagem para não haver nenhum erro nos resultados", afirma Alyce Monteiro.
O pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril Ciro Magalhães é um dos responsáveis pela condução do experimento e também coautor do trabalho. Ele destaca o papel dessa plataforma experimental de larga escala e longa duração.
"Trabalhos dessa magnitude são sempre solicitados, pois envolvem a busca contínua por recursos e também a interlocução constante com toda a equipe envolvida. Todas as ações são planejadas em conjunto, de modo a aprimorar os esforços para garantir a entrega de dados confiáveis, que irão embasar todas as ações que serão feitas posteriormente. Esse tipo de trabalho é de longo prazo e, para a obtenção de resultados, são necessários muitos anos de pesquisa",
afirma o pesquisador.
Magalhães ressalta ainda a importância de se obter esse tipo de respostas científicas na região de transição entre os biomas Cerrado e Amazônia, uma região de grande interesse no que respeito diz à sustentabilidade da produção agropecuária.
"É possível aumentar a produção de alimentos, fibras e energia por meio da conversão de áreas degradadas no bioma em sistemas integrados de produção. Ou seja, não há necessidade de abertura de novas áreas, mas sim fazer com que as áreas já abertas sejam utilizadas de forma mais eficiente",
pontua.
Foto: Gabriel Faria
Apoio a políticas públicas
Para os pesquisadores envolvidos nesse trabalho, os resultados ajudarão a embasar políticas públicas que visam a transição para uma agropecuária de baixo carbono, como o Plano ABC+, já implementado pelo governo brasileiro.
Magalhães lembra que adotar sistemas de integração, sejam eles trabalho-pecuário, pecuário-floresta ou ILPF, exigem mais esforços de todos os envolvidos.
"Como são sistemas mais complexos, os sistemas ILPF bloqueiam ações de capacitação de mão-de-obra, financiamento a partir de linhas de crédito diferenciadas, estudos de mercado e investimento em infraestrutura", observa o pesquisador.
Já Pedreira lembra que mesmo uma pecuária solteira pode ser um vetor de redução de emissões de gases de efeito estufa, se houver um bom manejo de pastagem e dos animais.
"Talvez seja preciso rever o que pode ser fomentado pensando em auxiliar o produtor também nos sistemas de pecuária tradicionais. Sabendo que eles podem ser altamente produtivos, se bem trabalhados, com fertilidade do solo corrigido, suplementação animal e uso das boas práticas agropecuárias, podemos reconsiderar nossas políticas no sentido de contribuição também nossos sistemas com base na pastagem", ressalta Pedreira.
Livro escrito por jovens pesquisadores reúne sugestões para o enfrentamento dos desafios da região e aponta novos caminhos para pesquisas.
Com informações do IPAM Amazônia
Pesquisadores e instituições da sociedade civil de todo o Brasil se uniram a fim de revisitar as pesquisas focadas no desenvolvimento sustentável, na conservação e na inclusão social da região amazônica. Os resultados desse processo culminaram no livro 'Diálogos Amazônicos: contribuições para o debate da sustentabilidade e inclusão', publicado em 14 de novembro pela Escola São Paulo de Ciência Avançada Amazônia Sustentável e Inclusiva, com acesso gratuito em português, espanhol e inglês. A cerimônia de lançamento foi transmitida através do canal da Agência Fapesp.
Entre as questões enfrentadas no livro está a importância de metodologias participativas – encontro entre o conhecimento local com o científico – para o fortalecimento da perspectiva das comunidades ribeirinhas na adaptação às secas na região.
Segundo os autores, a centralidade da água e dos rios na rotina e no equilíbrio amazônico torna secas como as registradas em 2023 ainda mais prejudiciais.
Com alterações severas no ciclo de chuvas e estiagens, o modo de vida da região é diretamente afetado e as perturbações podem ser sentidas de maneira mais clara nas populações mais próximas dos cursos d'água.
"Nunca foi tão evidente e assustador o quanto as mudanças climáticas estão alterando a sazonalidade das secas na Amazônia. Esse ano está marcado por uma seca excepcionalmente intensa, com quebras de registros históricos dos níveis dos rios, fazendo alguns afluentes simplesmente desaparecem e isso está impactando diretamente as comunidades ribeirinhas. Estudos futuros precisam levar em conta como estas comunidades estão lidando com esses eventos",
ressaltou Ana carolina Pessôa, pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e uma das autoras do livro.
Foto: Reprodução/IPAM Amazônia
Ouvindo as comunidades
No livro, pesquisadores defendem que ouvir aqueles mais afetados pelos impactos de eventos climáticos amazônicos vai além da necessidade de conhecer seus relatos e pode apontar novos caminhos para a Amazônia. Dessa forma, o intercâmbio entre cientistas e povos tradicionais abre caminho para inovações que podem auxiliar no enfrentamento aos impactos das secas severas e outros dilemas que atingem a região.
"Essa metodologias permitem que o pesquisador capte a percepção local de dos eventos que atingem determinada região. Vai além da visão do pesquisador sobre os problemas e permite que, com essa percepção local, nossas propostas e soluções se tornam mais contextualizadas e se adequam melhor às comunidades que pretendemos ajudar", destaca Ana.
Dentre as soluções, nascidas da interação entre grupos e destacadas pela pesquisadora, estão o uso do calendário ecológico para melhorias no plantio, enriquecimento dos roçados por meio de fertilizantes agro ecológicos sustentáveis a fim de intensificar o uso do solo e a criação de sistemas de monitoramento e alerta precoce para prever eventos climáticos extremos na região.